CÓDIGO PRETO
Em Código Preto, o espião, outrora um cruzado solitário na defesa da pátria em perigo, redescobre-se como um improvável homem de família.
Para uma história que recorre à figura do espião, Código Preto (Black Bag, 2025, de Steven Soderbergh) dispõe de uma encenação manhosa. Afinal, entre os heróis possíveis, não existiria nenhum mais solitário. No cinema, tal ofício exige a dissociação de vínculos, em um resultado que tende para o sociopata chique, carismático e eficiente. Tal filme flerta apenas com a segunda metade disso, enquanto substitui a primeira pelo elo do casamento.
Logo, a atenção se move para longe de qualquer símbolo de isolamento. Nestas histórias, solidão é um risco ocupacional. Impõe-se este custo a alguém graças a tal ofício. A disciplina profissional pretensamente voluntária só pode ser aceita com ressalvas. Pois o espião não é, afinal, um trabalhador? E, mais do que isso, um funcionário público? O fardo que recai sobre ele é um prejuízo infringido pela sociedade.
A mescla entre renúncia e sacrifício decorre da exigência pela lealdade à opressão do complexo industrial militar do pós-guerra. Solução perfeita, adéqua, à cultura popular, o romance do herói demoníaco que se depara, em desgraça, com um diabo mais astuto: é o Alec Leamas (Richard Burton) de O Espião que Veio do Frio (The Spy Who Came In from the Cold, de 1965, de Martin Ritt).
A primeira vítima dessa doença ocupacional será a vida afetiva do espia, como se expressou com clareza no urtext do gênero, Cassino Royale, primeiro livro de Ian Fleming com James Bond. Os leitores do ensaio de Umberto Eco conhecem bem o imperativo de que o agente do MI-6 ponha de lado seu amor por Vesper Lynd antes de se tornar o assassino perfeito.
Até que a morte os separe
Em contraponto, Soderbergh se concentra em um casal, utilizando-o como indício de uma união estranha as outras histórias. Guiado pelas convenções do gênero, o casamento de George (Michael Fassbender) e Kathryn (Cate Blanchett) não poderia ter outro destino que sua dissolução. Ocorre o oposto, e, de modo pouco usual, ele termina mais sólido do que quanto o filme começou.
Dentro do esperado, Código Preto versaria sobre a traição e o adultério entre seus protagonistas. De fato, o filme até mesmo flerta com esta ideia. Quando George recebe a missão de investigar o vazamento do Severus, um dos suspeitos é sua própria mulher, outra araponga, com um posto e habilidades compatíveis aos dele. Porém, a suposta conspiração conjugal, muito rápido, vira como que uma gozação.
A partir disso, a esperteza da história se desdobra na investigação que abarca mais dois casais, e não só aquele primeiro. Nisso, a astúcia do filme se revela ainda mais, e não menos intensa. Os outros pares entrariam facilmente no encaixe do gênero. Com este formato, pouco importaria que, para o estilo, o número continuasse elevado, desde que a desgraça se abatesse sobre todos.
Todavia, o infortúnio é uma dificuldade reservada para os outros. Clarissa (Marisa Abela), uma técnica de satélites, mantém um relacionamento com Freddie (Tom Burke), um supervisor de inteligência. Como complemento a ambos está James (Regé-Jean Page), um militar de posto homólogo, e Zoe (Naomie Harris), a psicóloga do Serviço.
Estes outros duos não vão lá muito bem. Em um caso, tanto o homem quanto a mulher se afeiçoaram à infidelidade recorrente. No estilo, mentiras de real perigo são apenas aquelas que afetam a segurança nacional. Mas Clarissa e Freddie traem devido ao velho e bom cansaço de sua relação, colocando-os em posição lateral às convenções.
Todos estes personagens são coadjuvantes. É sobre George e Kathryn que o filme se interessa. A lealdade recíproca constrói um laço indestrutível, que amarra ambos de um modo que ninguém vai desatar. A única certeza de Código Preto é que, para preservar sua esposa, o espião nunca cogita outra diretriz a não ser sacrificar tudo que for preciso em sua profissão.
De um modo que Bond jamais cogitaria, a Grã-Bretanha e o Rei Carlos III estão milhas abaixo dos jantares com Kathryn, A dúvida sobre a esposa nunca a transforma em alvo. A gentileza é recíproca: a trama da parceira em tempo algum mira em George ou o usa como um meio. O casamento jamais deixará de ser um contrato de lealdade.
Nada mais útil que o eixo se desloque bem antes do final, esclarecendo que tanto George como Kathryn foram usados. Freddie e James, em uma cooperação não intencional, montam dois complôs, cada um com seu alvo. O primeiro manipula Kathryn para comprar Severus do dissidente russo, impedindo um acidente nuclear. O segundo causaria uma tragédia atômica e desestabilizaria a Rússia.
A união do casal contrasta com o adultério e a desconfiança alheia. O catolicismo da psicóloga a leva a impedir o genocídio violando o segredo a ela depositado pelo namorado. Ao elo frágil se conecta a perfídia com o amigo transformado em amante. Voilá! Punir os oponentes talvez corrija a catástrofe humanal. Mas, certamente, sara a rusga produzida no vínculo dos protagonistas.
Não levantarás falso testemunho
O efeito decorre da mentira, recurso indispensável a um gênero guiado pela exigência do herói em se ocultar usando toda sua astúcia. Para o agente, a fraude é como o formão para o carpinteiro. Os engodos evidenciam competência profissional. Visão nua, esta que aí opera. Pois o vigarista toma ao oferecer, à vítima, alguma confiança: era o otário quem venceria, no instante quando perde
Esta ilusão se mostra estranha ao espião que despoja a vítima sem pudor. Assim tão franca, a exploração funciona como a contraparte daquela angústia que, em outro momento, dissolveu os vínculos humanos do herói em desamparo. Efeito desagradável, sua compensação abarca o charme destes indivíduos. Não por acaso, as roupas e sapatos de George e Kathryn são impecáveis, como sempre.
Mas esse brio garboso funciona só até quebrar. Pois o universo do espião será sempre o da paranoia. A vigia e a tocaia recobrem, como uma casca, tal desassossego. Não por outra razão, Código Preto se concentra na atalaia. Kathryn sente quando George a observa; e a confissão dele, para Clarissa, sobre o segredo para o êxito matrimonial expõe a disposição de ambos à espreita recíproca.
Soderbergh flerta com os traços do gênero do jeito caro aos filmes espertos. A cilada que conduz a segunda metade da narrativa fica do lado de fora do único romance que importa; as pistas falsas fazem com que os dois oponentes se traiam; os interrogatórios e os testes em busca da mentira revelam a conspiração cruzada; e o confronto busca o inimigo fora do leito conjugal.
Em um embate externo ao casal, nunca interno a ele, George e Kathryn se fortalecem graças a seu emprego na Inteligência Britânica. Código Preto é um exercício consciente – talvez em demasiado – sobre certas convenções. Seu prazer, ele reserva a um público educado, hábil em reconhecer as marcas corretas de sua narrativa, neste exercício de um cinema saturado de si mesmo.
Autor
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João Martins Ladeira é professor e pesquisador em comunicação.
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