“You”: O Espelho Sombrio da Sociedade Contemporânea
Se as narrativas contemporâneas refletem a evolução – e os desvios – da sociedade, You (2018-2025) surge como um thriller psicológico perturbadoramente catártico. A série, produzida pela Netflix e baseada nos livros de Caroline Kepnes, expõe com crueza as fissuras de nossa cultura, especialmente no que diz respeito ao amor, à obsessão e à violência romantizada.
Criada por Sera Gamble (roteirista e showrunner de Supernatural) e Greg Berlanti (responsável por obras como Com Amor, Simon), a série acompanha Joe Goldberg (Penn Badgley), um homem carismático cuja fachada de intelectual sensível esconde uma mente manipuladora e letal.
Cada temporada apresenta uma nova vítima de sua obsessão, numa narrativa que mistura o voyeurismo de Bebê Rena com a sofisticação macabra de Hannibal. Na primeira temporada, Joe persegue Beck (Elizabeth Lail), uma aspirante a escritora ingênua. Já na segunda, ele se envolve com Love Quinn (Victoria Pedretti), uma mulher tão perigosa quanto ele – revelando uma dinâmica tóxica que se aprofunda na terceira temporada, com um casamento disfuncional e violento. Na quarta, Joe assume uma nova identidade em Londres, onde se aproxima de Kate Galvin (Charlotte Ritchie), consolidando seu ciclo de destruição. A quinta temporada avança no tempo, apresentando Joe e Kate já casados, com a presença do filho de Joe e Love – um lembrete constante do passado violento que ele tenta enterrar.
Ao longo dos 10 episódios finais, acompanhamos o castelo de cartas de Joe desmoronar: seu casamento entra em colapso, sua fachada de homem reformulado racha, e uma nova obsessão surge – Bronte (Madeline Brewer), mais uma vítima em potencial. O desfecho de You segue um caminho previsível para o gênero: Joe é preso, como um Ted Bundy moderno, encerrando sua saga. Nos momentos finais, as mulheres que ele destruiu são, simbolicamente, reivindicadas como heroínas – não mais vítimas passivas, mas figuras que, mesmo na morte, desafiam sua narrativa distorcida. Mesmo que a narrativa, escrita por um casal, derivada de um livro escrito por uma mulher seja deliberadamente sobre um homem, é nele que tudo se acaba, a última cena de Você, mostra Joe na prisão, câmera em close em seu rosto, o vermelho de seu uniforme que é simbólico por tudo que a série representa, em contraste com o azul bebê da cama que ele deita e o voice over que narra:
“Pessoas machucadas machucam pessoas… Talvez nós tenhamos um problema como sociedade. Talvez a gente deva consertar o que tá quebrado em nós. Talvez o problema não seja eu. Talvez… seja, Você!”.
Câmera em close no rosto de Joe com seu macacão vermelho deitado na cama azul bebê.
Fade out. Sobe os créditos.
Se por um lado a série You se veste com os trajes mais refinados da produção audiovisual — fotografia que oscila entre o calor do desejo e o frio da obsessão, roteiro afiado como a lâmina de um caçador, direção que conduz o espectador como um passeio clandestino pelas sombras, e atuações que transformam suspiros em ameaças —, por outro, seu cerne escorrega no excesso. Não no excesso de violência, linguagem já decifrada e banalizada pelas telas do streaming, do cinema e até das novelas. O excesso aqui é mais sutil, mais perverso: é a normalização do monstro como objeto de fascínio.
É estranho, quase poético em sua crueldade, observar como nos entregamos a vilões, anti-heróis e personagens dilacerados por contradições. Não que isso seja novo — a história do entretenimento sempre flertou com o lado sombrio —, mas há uma mudança de tom na virada do século XXI, um apetite crescente por narrativas que esfregam na nossa cara o charme do abismo. Bebê Rena, Como Sair Impune de um Assassinato, Bom Dia, Verônica, The End of the F**ing World*, Black Mirror, Malévola, Coringa (apenas o primeiro), Dahmer: Um Canibal Americano, Peaky Blinders, Dexter, Bacurau (sim, Bacurau), Breaking Bad, Medida Provisória, Necrópolis, The Umbrella Academy… A lista é infinita, um desfile de monstros que, de tão bem costurados, nos fazem torcer por seus crimes. Engraçado? Assustador? Talvez ambos.
Amamos esses personagens que degolam, que explodem, que segregam, que apagam a humanidade alheia — mas sempre com um porquê, um trauma trágico que os redime, mesmo que só por um instante, como se o sangue em suas mãos fosse tinta de uma pintura expressionista. Justiça, de Manuela Dias, caberia perfeitamente nesse repertório.
Em You, por trás da estética impecável e das atuações que beiram a excelência, há uma verdade incômoda: Joe não mata por amor. Não há poesia em seus crimes, apenas posse. Ele mata por medo do abandono, por pânico da rejeição, por incapacidade de enxergar o outro como algo além de um objeto a ser conquistado ou descartado. Suas ações são brutais sem glamour, vívidas sem romantismo. A série é mestre em tecer, fio a fio, nossa cumplicidade com ele — nos dá motivos, justificativas, até um certo afeto —, para então, nos últimos três minutos do último episódio, arrancar o véu com um puxão. Joe não é o homem que “ama demais”.
É o homem que destrói demais, escondendo-se atrás do mito do amor como redenção. E é aqui que a ficção sangra na realidade. Sua vizinha, sua tia, sua amiga, você mesma — quantas já não cruzaram com um Joe? Homens que “amam demais”, que sufocam, que batem, que matam, que roubam pedaços de quem somos até que sobre pouco para acreditar no futuro.
You é uma série para ser digerida devagar, com paladar amargo e o terceiro olho aberto: o da sabedoria. Se sua maestria técnica é inegável, seu perigo mora justamente na sedução do vilão-anti-herói-protagonista. Porque Joe não ama. Ele sequestra, disfarçando seu narcisismo e misoginia em versos de dor passada. E se há algo de justiça na narrativa, é sua prisão final — não por seus crimes, mas por seu verdadeiro inferno: a solidão. Ali, trancafiado, ele pertence. Ali, tantos Joes da vida real deveriam estar. Mas a maioria, sabemos, ainda circula livre, repetindo seus ciclos em corpos alheios.
You não é só entretenimento. É um espelho embaçado — e quem olha para ele precisa ter coragem de reconhecer os vultos que se movem do outro lado.
Autor
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Publicitário com segunda graduação em Letras - Português/espanhol e suas respectivas literaturas pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Especialista em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais e Psicologia Analítica Junguiana. Mestre em Poéticas da Modernidade. Doutorando em Comunicação, na linha de pesquisa Mídia e Cultura, pela Universidade Federal de Goiás, bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Amante da sétima arte, da psicanálise junguiana, seus arquétipos e, também, da semiótica. Mistura tudo isso para compreender o mundo, a sociedade, a comunicação, o cinema, a literatura e as inter-artes.
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