Il Vangelo Secondo Matteo: Uma lembrança radical

II Vangelo Secondo Matteo: Uma Lembrança Radical

Existe uma certa vulgaridade em trabalhar com algo o qual não se acredita. Um ateu traçar a história de Cristo até parece um ato extraordinário. Se, recentemente, Žižek discutiu a trajetória do ícone católico no livro “A Monstruosidade de Cristo”, anos atrás, nos anos ’60, Pasolini caminhava ao lado de Enrique Irazoqui no majestoso “Il vangelo seccondo Matteo” (1964).

A comovente leitura de Pasolini aponta um Cristo de palavras retas, duras. Silêncios pétreos e planos em sua nuca servem como prenúncios dos discursos frontais e magnéticos do jovem messias. A Palavra não se importa em ser cortada pela chuva, queimada pelo sol ou tomada pela poeira, paira material perante o dia e a noite.

O Cristo romano de cabelos loiros e olhos azuis, metafísico e angelical, não existe para Pasolini. Seu Cristo é um jovem de cabelos escuros, barba por fazer e sobrancelhas que se tocam, um legítimo homem do povo. Sua oratória possui uma vontade revolucionária, fortemente materialista. Sua Palavra é inconformada e pulsante. O Jesus de Pasolini é como o Pantocrator bizantino.

Não existe espetáculo nos milagres performados, por pouco aparecem. Por exemplo, quando vemos Jesus andar pelas águas, o quadro não é composto por nenhum jogo de luz especial à situação. O filme de Pasolini é um documentário radical. Radical no sentido de seguir de forma bruta o escrito religioso que dá nome ao filme. Radical ao enquadrar o nascimento d’O Menino, observar com atenção os Reis Magos e sofrer o exílio da Santa Família rumo ao Egito.

Diferente de The King of Kings (1927), de DeMille, o filme de Pasolini não se interessa pelo extraordinário metafísico ou pelo pueril cinematográfico. Os cenários são construções do sul italiano. Antigas casas, muralhas e pontes. O sobrenatural cristão não se faz importante.

O Jesus monotônico de Pasolini traz um grande foco em sua mensagem. Pouco altera sua voz ou expressão. O como da vinculação d’A Palavra não é o ponto, a mesma se mostra suficiente por ela mesma, não necessitando de atuações exageradas para tocar o espectador. O foco no discurso propõe a frontalidade d’O Homem, se interessa pelo seu caráter político e revolucionário, pelo perseguido, pelo exilado, pelo radical.

O uso da Subjetiva Indireta Livre que o diretor emprega através da câmera na mão em alguns momentos, como na cena do julgamento de Cristo pelos sacerdotes do templo, reforça ainda mais o caráter de quase documentário do filme. A câmera, em meio às cabeças, se comporta como um olhar curioso, quase escondido e esquecido. Intoxicando a visão de um personagem na terceira visão do filme.

Sem volume, como uma pintura bizantina, o filme de Pasolini se interessa com a beleza do discurso, com a dureza da frontalidade. O Evangelho, de Pier Paolo, é uma leitura realista do texto integral, uma lembrança brutal do imaginário ocidental. Um aperto de mãos com o menos místico dos Evangelhos.

 


Autor

  • Murilo de Castro

    Internacionalista de formação. Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar) com bolsa CAPES, pesquisa Cinema e Patologias; Cinema e Sexualidade; Cinema e Semiologia. Editor-Chefe da Película e integrante do Coletivo Cine-Fórum.

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