CLOUD (2024) – ACHO QUE TAMBÉM É SOBRE SOLIDÃO

CLOUD (2024) – ACHO QUE TAMBÉM É SOBRE SOLIDÃO

Enquanto muita gente ria com os momentos cômicos de Cloud (2024) na exibição do Olhar de Cinema, em Curitiba, confesso que me sentia cada vez mais desconfortável e intrigado. O novo filme do diretor Kiyoshi Kurosawa é uma reflexão clara sobre ações e consequências, indo além: ele consegue tensionar a linha tênue entre o bem, o mal e as verdadeiras intenções. No longa, acompanhamos Ryosuke (Masaki Suda), conhecido como Yoshii e na web como Ratel, em uma jornada quase comum, onde ele, um produto do capitalismo moderno, toma atitudes cada vez mais duvidosas em busca de sucesso e grana com seus negócios online.

Conforme suas compras e vendas crescem, fica claro que o talento de Ratel é vender “qualquer coisa”. Com sua lábia, ele compra produtos a preços baixíssimos, mesmo explorando as vulnerabilidades dos vendedores—que se configuram em social, emocional e outras—e os revende por valores altíssimos, buscando o lucro máximo e rápido. Nesse ritmo frenético, ele não se importa com o produto, sua procedência, originalidade, nada, apenas com o ciclo de compra e venda.

O drama começa quando percebemos as consequências na vida das pessoas que cruzam o caminho de Yoshii. Compradores que revendem produtos falsos sem saber, clientes que adquirem itens com problemas e não conseguem reembolso — as possibilidades são infinitas e muitas vezes estão apenas implícitas. Assim, o filme se torna uma potente discussão sobre o caráter de Yoshii e os limites do certo e errado. Porém, há um detalhe profundo e silencioso no longa, tão importante quanto a questão da justiça: a solidão.

Desde o início, o roteiro de Cloud se mostra pragmático ao apresentar personagens que parecem transparentes, mas que, no fundo, guardam segredos e desejos sombrios. Akiko (Kotone Furukawa), namorada de Yoshii, por exemplo, não esconde que está com ele pelo que ele pode oferecer. Ela é descompromissada com o mundo e vê Yoshii apenas como um meio para seus próprios fins. Sano (Daiken Okudaira), contratado por Yoshii quando o negócio decola, revela aos poucos um passado ligado à Yakuza, mas, como Akiko, também enxerga no chefe uma oportunidade. Muraoka (Masataka Kubota), que parecia amigo de Yoshii, não demora para demonstrar desprezo e revelar sua ganância também.

Essas relações baseadas puramente no interesse dão uma camada melancólica para o protagonista. A solidão se intensifica quando entendemos a dimensão de sua desconexão com o mundo. A atuação de Masaki Suda nos confunde, mostrando facetas em Yoshii com as quais podemos nos identificar: a ambição, a sensação de já ter sido explorado, a vulnerabilidade de não poder confiar em ninguém. Ao mesmo tempo em que se distancia quando vemos que Yoshii parece incapaz de se aprofundar em qualquer coisa que não sejam seus negócios. Não há um momento genuíno de afeto com Akiko que não seja moldado por suas ambições; ela é mais um “ativo” em sua vida, algo para criar uma idealização do seu mundo. Além de Muraoka – uma amizade claramente pautada na oportunidade –, ele não tem outros amigos.

Dentro da web, a rede de interações que Yoshii constrói para seus negócios, onde ele negocia e lucra quase de forma impiedosa, parece um paradoxo que apenas acentua a sua solidão. A onipresença no espaço digital, que deveria conectar, apenas o envolve em um manto de isolamento, onde as pessoas são meros dados, compradores ou vendedores, e não seres humanos com os quais ele possa se relacionar de forma real. Ali ele é Ratel, uma entidade controladora, mas Ryosuke na vida real parece cada vez mais à deriva, sem controle e à mercê de um destino traiçoeiro.

A solidão de Yoshii é tão enraizada, que ele parece não ter um modelo emocional. Suas relações são superficiais e incapazes de proporcionar momentos de autocrítica e reflexões, cegando o protagonista do seu próprio caráter, das suas próprias escolhas e da possibilidade das microtransações resultarem em catástrofes exponenciais protegidas por um falso anonimato. A falta da intimidade ou confiança verdadeira, fazem com que Yoshii não consiga ver além do próprio nariz, e é um catalisador para os questionamentos que os espectadores erguem, sobre a intenção das suas ações.

Em meio a essa desconexão generalizada, a solidão de Yoshii está além de se manter passivo, mas Kurosawa nos mostra a possibilidade de um resultado violento, e tão real quanto qualquer absurdo que não acreditamos, mas testemunhamos no cotidiano. Para além da direção e todos os aspectos técnicos que não faltam aos trabalhos do diretor, as camadas que essa narrativa, em especial, cria e possibilita observarmos, é o que torna Cloud uma experiência muito subjetiva, sensível e que usa brevemente o cômico e absurdo para nos permitir respirar. No fim, o tiroteio, traição e a perseguição, não são nada mais do que o resultado de um desespero contemporâneo e de um falso senso de justiça que sem se dar conta Yoshii alimentou.

 

Autor

  • Washington Albuquerque

    Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo (PPG-CINEAV/UNESPAR), pós-graduado em História da Arte (ESTÁCIO DE SÁ), bacharel em Publicidade e Propaganda (UNICURITIBA). Bolsista CAPES-DS. Designer multidisciplinar e filmmaker no Masdon Studio. Game designer na Odd Press.

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