O amor no fim do tempo em Amour e Vortex
Amar é uma atividade repulsiva. Os filmes Amour (Michael Haneke, 2012) e Vortex (Gaspar Noé, 2021) apresentam, sob ópticas estéticas distintas, figurações do fim da vida e da progressiva dissolução subjetiva e corporal provocada pela velhice, pela doença e pela morte. Embora Haneke e Noé pertençam a escolas cinematográficas com abordagens formais diferentes — o primeiro associado a uma tradição austera do cinema europeu e o segundo conhecido por sua sensorialidade agressiva e por um cinema provocador —, ambos convergem ao proporem uma vivência cinematográfica radicalmente ética e afetiva diante da decadência humana.
A EXPERIÊNCIA DA DECADÊNCIA: ENTRE O CORPO E O TEMPO
No cerne de Amour está a história de Anne e Georges, um casal de artistas aposentados que compartilha a vida em um pacato apartamento parisiense. Quando Anne passa por um agravado caso de Alzheimer, inicia-se um lento processo de degeneração física e mental. Georges passa a cuidar dela em casa, numa rotina extenuante e íntima. A experiência do amor torna-se inseparável da experiência da dor, da perda e do esvaziamento da subjetividade da mulher que ele amava.
Em Vortex, Noé retrata um casal idoso em seus últimos dias, utilizando o recurso do split screen para apresentar dois pontos de vista simultâneos: o de Elle, que sofre de demência severa, e o de Lui, um intelectual do cinema com problemas cardíacos. A fragmentação visual intensifica a sensação de descompasso, incomunicabilidade e alienação mútua — ainda que o amor, em estado terminal, permaneça como vínculo silencioso.
Em ambos os filmes, a decadência não é figurada como evento dramático, mas como processo: uma desintegração progressiva, inexorável e desprovida de heroísmo. Uma certa “agonia do cotidiano”: o lento desaparecimento do sujeito em meio à banalidade dos gestos, dos objetos e do tempo. A morte não chega de forma abrupta, mas se instala como presença constante e diluída na duração.

O TEMPO FILMICO E A ÉTICA DA ESPERA
Tanto Haneke quanto Noé optam por estruturas temporais que desafiam a lógica narrativa convencional. Em Amour, os planos longos e o ritmo lento contribuem para uma experiência de duração — obrigando o espectador a conviver com a impotência do personagem e a observar o sofrimento sem cortes ou escapes. Já em Vortex, o tempo é duplicado: as duas telas simultâneas criam uma sensação de excesso e simultaneidade desordenada, espelhando a fragmentação cognitiva da personagem com demência e o colapso da comunicação entre o casal.
Esse tipo de estrutura pode ser pensado a partir da noção de um certo “cinema da demora”[1], ou seja, o gesto de estender o tempo da imagem implica também uma ética da observação — não confundir com o slow cinema. Ao não cortar o sofrimento, o cinema obriga o espectador a confrontar sua própria condição de vulnerabilidade, rejeitando o conforto narrativo e emocional.
A ausência de trilha sonora, a economia de diálogos e a encenação em espaços reduzidos contribuem para um cinema que coloca a morte no centro da experiência estética — não como espetáculo, mas como fato físico e existencial. A imagem não procura aliviar o desconforto; ela o intensifica. Essa ética formal está em contato com um “olhar responsável” diante das imagens da dor: um olhar que não desvia, que suporta a fragilidade e que recusa a anestesia visual.
O ESPAÇO DOMÉSTICO COMO TOPOGRAFIA DO FIM
A espacialidade desempenha papel central em ambas as obras. Os dois filmes transcorrem quase inteiramente no interior do apartamento do casal. Em Amour, a casa se fecha aos poucos: portas se trancam, janelas se ocultam, até que o mundo exterior desaparece. Em Vortex, o apartamento é labiríntico, sufocante, carregado de livros, frascos de remédio e papéis — uma extensão física da confusão mental dos personagens.
O lar, que culturalmente simboliza o abrigo e a intimidade, é ressignificado como espaço do declínio. O doméstico torna-se o cenário da agonia, a materialização do corpo que se deteriora. Há aqui uma espécie de topografia da decomposição, em que o espaço expressa o colapso da identidade e da linguagem. Em certa instância, o corpo e o espaço cinematográfico estão profundamente conectados: ao figurar o corpo em falência, o espaço também se torna disfuncional, desorganizado, hostil.
O AMOR: ENTRE O CUIDADO E A FALÊNCIA
Contrariando as figurações românticas e idealizadas do amor, Amour e Vortex propõem um entendimento trágico e ético da experiência amorosa. O amor, nesses filmes, é responsabilidade — o fardo da permanência diante do desaparecimento do outro. Georges permanece ao lado de Anne até o fim, mesmo quando ela já não responde, quando já não deseja mais continuar. A cena final, ambígua e silenciosa, é marcada por um gesto extremo que pode ser lido como libertação ou como exaustão.
Em Vortex, o amor também não se comunica mais por palavras. Elle vaga pela casa como um fantasma, enquanto Lui tenta manter alguma ordem, alguma sanidade. Stéphane, o filho do casal — interpretado por Alex Lutz — tenta ajudar, mas é tragado pela impotência. O amor falha. E, ainda assim, insiste. Drogas, amores perdidos e a falta de dinheiro compõem o plano de fundo do filho.
É possível pensar o amor nesses filmes como uma “resposta à alteridade” — não uma identificação com o outro, mas a aceitação radical de sua diferença e de sua fragilidade. Amar, nesse contexto, é estar presente diante do desaparecimento do outro, mesmo quando esse outro já não nos reconhece.

MORRER
Amour e Vortex são filmes que desafiam o espectador não apenas pela dureza dos temas que abordam, mas pela recusa de qualquer forma de alívio estético ou emocional. São obras que nos colocam frente a frente com a finitude, com a decomposição da linguagem, com a falência do corpo e com o silêncio que se instala onde antes havia afeto. Ao recusarem o consolo e ao insistirem na observação, ambos os filmes nos oferecem uma rara oportunidade: a de testemunhar, com responsabilidade e sensibilidade, aquilo que o cinema não deveria tentar esconder — a experiência concreta da morte.
“On est bien peu de chose
Et mon amie la rose
Me l’a dit ce matin
A l’aurore je suis née
Baptisée de rosée
Je me suis épanouie
Heureuse et amoureuse
Aux rayons du soleil
Me suis fermée la nuit
Me suis réveillée vieille
Pourtant j’étais très belle
Oui j’étais la plus belle
Des fleurs de ton jardin
On est bien peu de chose
Et mon amie la rose
Me l’a dit ce matin
Vois le dieu qui m’a faite
Me fait courber la tête
Et je sens que je tombe
Et je sens que je tombe
Mon cœur est presque nu
J’ai le pied dans la tombe
Déjà je ne suis plus
Tu m’admirais hier
Et je serai poussière
Pour toujours demain.
On est bien peu de chose
Et mon amie la rose
Est morte ce matin
La lune cette nuit
A veillé mon amie
Moi en rêve j’ai vu
Eblouissante et nue
Son âme qui dansait
Bien au-delà des nues
Et qui me souriait
Crois celui qui peut croire
Moi, j’ai besoin d’espoir
Sinon je ne suis rien
Ou bien si peu de chose
C’est mon amie la rose
Qui l’a dit hier matin.“
“Mon amie la rose”, de Françoise Hardy.
[1] Resolução minha que ainda carece de definição total.
Autor
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Murilo de Castro é mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela Universidade Estadual do Paraná (Unespar/FAP); Bacharel em Relações Internacionais (UP). Pesquisador integrante do grupo EIKOS - Imagem e Experiência Estética (Unespar/PPGCINEAV-Unespar/FAP/CNPq). Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Editor-Chefe da Revista Película (ISSN: 3085-6183); Editor-Assistente da Revista Coletivo Cine-Fórum (ISSN: 2966-0513). Cineclubista pelo Cineclube Cerejeira (Ciclo de 2024). Autor do livro "A Poética da Angústia: Ensaios sobre o cinema de Gaspar Noé". Ensaísta e Crítico de Cinema. Participou da produção do filme “Nyx Post-Porn” selecionado para o Festival de Arte y Cine Contrasexual (FACC/2025), no México. Pesquisador nas linhas de: Cinema; Cinema e Patologias Sociais; Cinema e Violência; Cinema e Cultura; Cinema e Política e Narrativas Audiovisuais.
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