Tem que ser muito “homem” para assistir HOMEM COM H
Homem com H (2025) não é um filme sobre um artista. É um filme sobre a coragem de rasgar o próprio peito em plena luz do palco — e deixar que o mundo veja não só o brilho das lantejoulas, mas também as cicatrizes daquele que grita, rosna e canta a plena luz do tablado. Dirigido por Esmir Filho, a cinebiografia de Ney Matogrosso é menos uma celebração e mais um soco no estômago da masculinidade tradicional. Porque, sim, tem que ser muito “homem” — no sentido que Ney reinventou — para encarar essa jornada do filme sem desviar o olhar.
Jesuíta Barbosa não interpreta Ney Matogrosso: ele o devora, o rasga, come e goza com Ney. Cada gesto, cada olhar, cada suspiro é uma afronta à ditadura dos corpos. Não há imitação aqui, mas possessão — como se o ator tivesse aberto as veias para deixar o espírito do artista invadi-lo.
Em cenas como a do show para militares nos anos 70, em que Ney canta com um sorriso que é ao mesmo tempo provocação e desafio, o filme captura a essência de sua revolução: uma guerra travada sem armas, apenas com um corpo que se recusou a se encaixar; Ney nu em frente aos militares é um afronta ao que chamamos hoje de “família tradicional brasileira”, mas esquecemos que, como diz Ney é só um corpo e cada um tem o seu.
A narrativa evita a linearidade fácil. Em vez de uma sucessão de vitórias, vemos um mosaico de dor, resistência e teatralidade crua. O relacionamento com Cazuza (interpretado pelo estreante Julio Reis), a sombra do pai militar (Rômulo Braga, magistral), a epidemia de HIV — tudo é tratado com fragmentos que cortam como cacos de vidro. Se algumas passagens parecem apressadas, é porque a vida de Ney é grande demais para caber em duas horas de tela.
O filme prefere a verdade das lacunas à mentira das explicações fáceis.
O maior acerto de Homem com H está no que ele não diz. Não há discursos sobre “queeridade” ou bandeiras empunhadas. A política está no corpo de Ney: na forma como ele ocupa o espaço, na voz que desafina de propósito, na maquiagem que escorre como tinta viva. Sua arte era um ato de guerra — e o filme mostra isso sem romantização
As cenas de palco são batalhas, não espetáculos; cada performance, um soco no estômago do conservadorismo. As cenas de foda e sexo no meio do filme demonstram não só a época da liberdade sexual, mas a sexualidade em si de Ney Matogrosso, exposto na tela, que se fosse em 3D, talvez, pulássemos lá para foder também.
No fim, a obra transcende o biográfico. Não se trata apenas de Ney, mas de qualquer um que já precisou se desmontar para se encontrar. Ser “homem”, como ele redefine, não tem a ver com força bruta, mas com a coragem de se expor — frágil, contraditório, intenso.
Assistir a esse filme é também um ato de resistência. Porque, no fundo, tem que ser muito homem, muita mulher, muita pessoa, para encarar de frente o peso (e a beleza) da própria liberdade que está exposto em Homem com H.
Autor
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Publicitário com segunda graduação em Letras - Português/espanhol e suas respectivas literaturas pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Especialista em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais e Psicologia Analítica Junguiana. Mestre em Poéticas da Modernidade. Doutorando em Comunicação, na linha de pesquisa Mídia e Cultura, pela Universidade Federal de Goiás, bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Amante da sétima arte, da psicanálise junguiana, seus arquétipos e, também, da semiótica. Mistura tudo isso para compreender o mundo, a sociedade, a comunicação, o cinema, a literatura e as inter-artes.
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