GLÓRIA & LIBERDADE (2025) – RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES

GLÓRIA & LIBERDADE (2025) – RESISTÊNCIAS E CONTRADIÇÕES 

Pela primeira vez na história do Olhar de Cinema, uma animação disputa a Competitiva Brasileira. O longa “Glória & Liberdade” se passa no ano de 2050 e conta a viagem da documentarista Azul, que busca entender os processos de divisão de quatro nações do continente Pau-Brasil, todas na antiga região Nordeste e Norte do antigo país Brasil. Essa discronia especula sobre como seria uma nova configuração geopolítica, cultural e econômica caso a Cabanagem (1835-1840), a Balaiada (1838-1841), a Revolta Praieira (1848-1850) e a Sabinada (1837-1838) tivessem cada uma resultado em um Estado independente, uma nação própria.

A República do Grão-Pará nos ensina sobre como tudo conversa com a natureza e da ecologia estética vinculada a uma cosmovisão de respeito às memórias dos povos originários e sua luta por resistência. Se tudo é um só, como diz o pajé entrevistado por Azul, o anticapitalismo se torna necessário para compreender as conexões entre as partes dentro de uma cosmovisão, sem a abstração do fetichismo e alienação do mundo da mercadoria. O personagem explica que sabemos apenas o final das coisas e não o processo, a abstração da produção como resultado de um mundo capitalista. Ao não romantizar o índio, como tentou o romantismo clássico brasileiro, temos acesso à cultura como resistência, memorial, o resultado de todo sofrimento acumulado, porém em direção a uma resolução emancipatória.

Já em Caxias, é explicado que a gente inventa a história, que é um produto humano, feita por pessoas como eu e você. Os humanos que fazem histórias são aqueles em condições materiais aptas a isso, como explica o velho Marx. Os bonecos nos cantam a história de independência de uma terra humilde, de gente trabalhadora, das violências sofridas por um povo que revidou. A luta entre oprimidos e opressores, que resulta em um país com nome do líder inimigo, é o lembrete da memória de quem foi derrotado para que os verdadeiros donos do trabalho nunca se esqueçam pelo que e contra quem se existe e resiste.

Em Recife, é apresentada uma realidade cyberpunk, ultracapitalista numa megalópole que emerge sob as cabeças dos pobres e da lama do mangue. A sociedade da vigilância, de Bauman, é exibida, escancarada. Câmeras, dados, monitoração constante para vigiar e punir. É quase impossível Azul fugir do panóptico para poder conversar com os movimentos contrarrevolucionários. O Partido Praieiro domina o comércio e a imprensa, além das forças repressivas do Estado, e todas essas esferas parecem uma só, tamanho o nível de mercadorização. Suas drogas sintéticas são o amortecimento de uma dor da ferida aberta da construção de Pernambuco: a escravização como principal comércio, com um porto que ficou entre os três mais importantes para o mercado escravista no mundo. O hackativismo tenta organizar uma revolta, a luta de classes e suas novas ferramentas.

De volta pra casa, na República da Bahia, a Sabinada manteve duas famílias como principais hegemonias no poder político do país. Sua verdadeira missão era entender o que divide aquelas nações para reuni-las num Brasil sem fronteiras. Entender as contradições de proporções regionais e continentais só pode resultar em confusão.

Porém, do interior surge uma nova revolta contra a capital. Quase uma luta de classes de periferia versus metrópole, para pensarmos em Fanon. Uma nova revolução, 200 anos após aquelas que nos dividiram, será que superaremos o paternalismo dos mártires? Será que as lutas de classes resultarão em uma sociedade mais justa, livre e com brasileiros emancipados? Não há como saber os projetos do futuro, nem quando a história está sendo feita, só se vive.

“Glória & Liberdade” (2025) é uma ode aos movimentos revolucionários emancipatórios e seus conflitos, às mortes e à violência como necessidade e não dominação. A resistência da Cabanagem e da Balaiada como mostras do artifício revolucionário de transformar ataque em defesa, pois se transformarmos defesa em ataque, seremos ensinados a apenas atacar, oprimir, reprimir, explorar, violentar etc.

A insuficiência dos movimentos federalistas, separatistas e demais coligações vinculadas a ideais liberais e burgueses exprimem a falha das revoluções burguesas, motores de mudanças nas relações e modos de produção, mas não de emancipação humana, apenas aspectos mais refinados de exploração de humano sob humano. Do ser humano coletivo urge a necessidade de lutar.

Infinitas influências, técnicas e artimanhas do longa de animação enriquecem os olhos com as cores e referências de uma pluralidade complementária e intensificável, de uma dialética tão confusa e complexa que nos é difícil entender onde começa a terminar. São texturas, tons, Brasil.

Desafiar a historiografia oficial, a história com H maiúsculo, como incentiva Clóvis Moura, é a função do pensamento crítico na realidade social brasileira. “Glória & Liberdade” (2025) é feliz por fornecer uma ficção científica tão anacrônica quanto contraditória, impulsionada por lutas, opressões e resistências, derrotas e vitórias, incertezas. Não oferece respostas, mas vontade de mudar, entende o verde-amarelo como máscara que oculta o verdadeiro significado de Brasil: vermelho.

Autor

  • Victor Finkler Lachowski

    Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-UFPR), vinculado à linha de pesquisa Comunicação e Cultura; Mestre em Comunicação (PPGCOM-UFPR); Bacharel em Publicidade Propaganda (UFPR). Integrante do NEFICS - Núcleo de Estudos de Ficção Seriada e Audiovisualidades (UFPR/PPGCOM-UFPR/CNPq). Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Bolsista CAPES-DS. Escritor, Roteirista e Redator. Autor da coletânea de contos "O Insosso e o Insólito entre os Pinheirais". Escritor da Revista Película (ISSN: 3085-6183). Pesquisador nas áreas de: Comunicação; Cinema; Cultura; Narrativas Audiovisuais; Narrativas Midiáticas e Comunicação Política.

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