ENA: uma animação incompreendida por neurotípicos
ENA, feita pelo artista peruano Joel Guerra, é uma animação surrealista e experimental inspirada em jogos da década de 90. A série protagoniza Ena, uma personagem inspirada no cubismo de Pablo Picasso, com metade de seu corpo cúbico e azul, e metade de seu corpo macio e amarelo. A personagem tende a falar com duas vozes dependendo de qual parte de seu rosto assimétrico possui a boca, com o lado amarelo possuindo uma voz masculina e agindo normalmente de forma alegre e calma, em oposição ao lado azul, que possui uma voz feminina e age de forma depressiva. A animação possui 4 episódios, e recentemente um jogo foi lançado.
Com a publicação do jogo “ENA:Dream BBQ”, uma grande audiência que nunca havia escutado sobre a série decidiu assistir aos 4 episódios como forma de contexto prévio para o jogo. ENA se provou, assim, um verdadeiro desafio a público moderno, confundindo boa parte de sua audiência, que tinha a tendência até então a receber roteiros hiper analisando seu mundo e personagens, ou a abandonar por completo a ideia de que a história possa ter um significado, tomando-a como algo sem sentido por natureza.
Embora nenhuma das duas reações sejam erradas, nenhuma traz real satisfação e proveito da série, pois ambas esperam de ENA um roteiro moderno com uma chamada à ação, motivação, arco de personagem e conclusão, algo que ENA não deseja entregar sempre. Afinal, o que ENA deseja entregar?
Nos 3 primeiros episódios, seguimos Ena enquanto ela navega por esse mundo surrealista, onde todos os personagens aceitam sua estranheza como natural. Personagens trocam conversas em inglês, russo, italiano, japonês e não questionam ou têm qualquer dificuldade de se entender. Todos os personagens têm aparências únicas, brincando livremente com 2D e 3D. O mundo de ENA possui suas próprias mitologias que são apenas vagamente explicadas. Os personagens se encontram em labirintos e desertos. As motivações de Ena pelos episódios variam entre ir atrás de um ser mitológico que realiza desejos, até ir para um leilão atrás de uma ampulheta gigante com um cachorro dentro. Apesar de sua estranheza, a série não a apresenta com o intuito de fazer graça do quão estranho tudo é, pelo contrário! Ela leva seu mundo e personagens a sério, enquanto também não se preocupa em explicar-lhes para a audiência, se sequer há uma explicação.
Isso acontece devido a seu objetivo não ser contar a história de como uma sociedade específica funciona, como esperado de séries de ficção. Joel Guerra procura uma abordagem experimental para si como artista, o que ele pode fazer e até onde ele pode chegar. Simultaneamente, a série oferece para a audiência uma experiência. Da mesma forma que Joel Guerra se desafia, brinca e se diverte com sua própria obra, ele desafia a audiência a ignorar todo conhecimento prévio que temos sobre o que é possível para uma série de animação (e consequentemente seus roteiros) ser, e simplesmente experienciar o que ele nos oferece.
Isso é, até o episódio 4, “ENA:Power of Potluck”. Até esse ponto, Joel G. estava se acostumando e experimentando com o próprio mundo, e chega ao 4º episódio muito mais confortável com esses personagens a ponto de querer contar uma história, embora infelizmente até esse ponto a audiência já tenha criado a expectativa de ENA como algo sem sentido.
Em Power of Potluck, seguimos Ena enquanto ela anda por um teatro-labirinto. A parte azul do rosto de Ena está agora separada de seu corpo em uma máscara flutuante e sorridente, que só é unida a Ena por uma longa fita, e auxilia Ena a navegar pelo teatro. Ena fala poucas falas pelo episódio, com sua máscara tomando suas falas. Ela encontra diversos personagens a caminho do palco, que parecem estar extremamente emocionados pela peça e explicam o porquê do ato sendo apresentado os tocou tanto. Ela se esforça para entender a motivação de cada personagem, mas enquanto sua máscara conversa com as pessoas e tenta compartilhar de sua felicidade, seu corpo não compartilha do mesmo entusiasmo. Durante a maioria do episódio, vemos Ena fisicamente, mas Ena não está mentalmente ou emocionalmente presente.

Apenas durante o quarto e último ato, onde ela é confrontada pelo último personagem que aponta uma exageração em sua felicidade, recebemos a revelação de que Ena já foi diversas vezes àquele teatro e nunca parecia satisfeita. Em suas próprias palavras: “Tudo que ganhei foram sentimentos incompreensíveis e essa máscara ridícula.” Ao falar isso, sua máscara quebra e finalmente vemos a personagem que conhecemos sendo honesta e vulnerável.
Esse novo personagem, uma possível personificação do próprio teatro, explica que ela nunca encontrará diversão ali. “Diversão é mais lisa que sabonete, não é? Mas lembre-se — Ela nunca está perdida para sempre. Comumente, a melhor diversão é encontrada nos menores momentos. […] Você não precisa mais vir aqui. Essa é a tua resolução.”
Ena sempre foi uma personagem que apresenta uma forte desregulação emocional e sintomas de bipolaridade, um traço que ela se desculpa durante a sua primeira introdução. Vemos pela série indicações sutis sobre sua dificuldade de se relacionar socialmente devido a suas emoções altamente instáveis e inconstantes, e acima de tudo, sua dificuldade de se sentir satisfeita consigo mesma, apresentando uma baixa e frágil autoestima, e possivelmente desejando (no episódio “Temptation stairway”, para o ser equivalente a um gênio) abdicar de suas mudanças de humor e miséria.
Durante a série inteira ela busca por satisfação e diversão, mas ao mesmo tempo que é altamente dependente emocional da felicidade trazida pela diversão, ela possui dificuldade de agarrar a mesma. O episódio 4 apenas trás para frente a sua frustração consigo mesma de não conseguir atingir a felicidade com a mesma facilidade que as pessoas neurotípicas em sua volta, e o quão solitário é a sua existência como alguém neurodivergente.
Apesar de possuir uma amiga ao seu lado, Ena tem suas mudanças de humor tratadas como algo inconveniente ou até ignoradas por sua única amiga, algo que pode chegar a piorar sua baixa autoestima e solidão.
Porém, o episódio 4 oferece a Ena a paz da certeza, onde mesmo que a felicidade que ela busque seja inconsistente, ela sempre voltará, não de uma forma grandiosa, onde ela será curada de sua bipolaridade, mas de formas pequenas, temporárias e constantes.
ENA é descrita como uma animação surrealista por sua escrita inconveniente e mundo que remete a uma paisagem de um sonho, mas também possui uma característica do surrealismo muitas vezes esquecida: O conforto e aceitação da “loucura”. ENA é uma série que escreve seus personagens e seu mundo de forma que grande parte das pessoas que encontram uma conexão com a série são pessoas neurodivergentes que já experienciaram alterações de humor constantes e sufocantes. ENA, em sua maior demonstração de amor ao surrealismo, desafia neurotípicos e conforta neurodivergentes.
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Ofélia é uma das personalidades de Pierre SQ, maranhense-capixaba com suspeita de TDI, estudante de Artes Plásticas na UFES. Ofélia é uma emergente escritora com suspeita de autismo, estuda especialmente arte contemporânea, e está em processo de escrita de análises de arte e um livro de terror marítimo.
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