A substância (2024)

A SUBSTÂNCIA (2024)

O mais constrangedor de A Substância (The Substance, 2024, de Coralie Fargeat) é sua literalidade. Afinal, ao contrário do que efusivamente se disse, o filme versa menos sobre beleza, fama ou idade. É a história de uma droga, cujo resultado oferece não uma versão melhorada de alguém, mas um portal entre dois mundos.

A interpretação realista de uma história fantástica supôs a dicotomia entre duas gerações de mulheres, leitura como que imposta pelo filme. Se assim fosse, tudo se resolveria na fantasia interdita para a primeira e realizada pelo duplo. A confusão surge de uma tentativa legítima por um acerto.

Pois A Substância investiga a elo entre o rosto e a máscara, a face límpida e opaca, assim como a distância que as separa e que as une conforme uma entrada se fecha ou se abre. No filme de Fargeat, esta conexão reside no pórtico responsável por garantir a passagem entre ambos os estados.

Elizabeth (Demi Moore) e Sue (Margaret Qualley) se associam graças a um acesso giratório, que opera a partir de todo um conjunto de procedimentos responsáveis por expor as duas faces. O problema do filme está no funcionamento adequado desse método.

 A Substância remete a um tema essencial para o filme de horror atrelado ao personagem do monstro. Estas criaturas apontam para faces mescladas, na conjunção entre as qualidades de uma entidade e de outra. A existência conjunta decorre de um determinado momento quando a transformação ocorre.

Instante chave, será sempre delicado. A ocasião permite a convivência destas frações sempre presentes, e, por isso, nunca vistas em simultâneo. A máscara se alterna com o rosto; e, no revezamento entre uma condição a outra, certo aspecto se retira na penumbra para, depois, retornar à luz.

A transição entre estes dois estágios nada possui de fácil. Em toda a operação, existe sempre um mecanismo dotado de alguma engenharia muito particular. Os rituais abarcam detalhes encenados como uma cerimônia, a fim de se garantir o desfecho esperado. Tal gênero de horror cabe todo nessa imagem.

Drácula ataca Mina Harker três vezes, e apenas na última o vampiro a condena, obrigando-a a beber seu sangue. Um lobisomem produz o próximo mostro graças a sua mordida; e a nova criatura, que se transforma apenas na lua cheia, destruíra um inocente em cada uma de suas mutações.

Eliminar tais aberrações não é menos complicado do que criá-las. A morte de Lucy Westenra depende da estaca no peito, da decapitação, do preenchimento de sua boca com alho. O lobisomem tem que se atingido pela bala de prata. Um ataque equivocado e esses entes permanecem invencíveis.

No filme de Fargeat, todo o conjunto de passos para o ritual está no intrincado protocolo responsável por orientar o uso das diversas drogas. É o soro de cor pastel; o remédio que parece ter sido retirado de um rio poluído; o alimento em sete pequenos receptáculos, que lembra uma papinha de criança.

O primeiro medicamento deve ser administrado numa dose única. É preciso garantir o fluxo de nutrientes para o corpo inativo de Elizabeth. A segunda mulher tem de injetar um fluido retirado do ente original. O processo se encerra mediante um terceiro líquido, que serve apenas para destruir Sue (Margaret Qualley).

A isso se associa o caráter secreto do procedimento de transformação. Como usualmente ocorre, o ritual em A Substância será sempre invisível para os demais. Nos sete dias nos quais uma permanece ativa, a outra descansa no chão do banheiro, até ser removida, depois, para o refúgio habilmente construído.

A contraposição entre a imobilidade de uma e a atividade da outra envolve não somente o sequestro de alguma liberdade de ação. Se parte do filme transcorre no interior do apartamento da atriz, é porque essa será a melhor maneira de relacionar duas dimensões do tempo e do espaço: uma concreta, a outra imaterial.

A alternância entre Elisabeth e Sue se dá em um ambiente bem distinto do qual ocorrem os demais eventos. A metamorfose contrapõe a materialidade do cotidiano e a imaterialidade desse pórtico. Existe o ambiente onde uma flerta com seu amigo de infância e a outra com o motociclista, e há também este segundo espaço.

A casa habilita a oposição entre tais dimensões límpida e opaca. É a distinção entre, por um lado, a sala; e, por outro, o banheiro, ao qual se associa a câmara construída para além dele. O truque precisa do esconderijo na fração mais recôndita da residência, reservando um lugar para além da realidade.

O filme de terror encena aquelas duas faces a partir da solução mais simples que o cinema oferece à convivência bizarra entre imagens indiscerníveis. Sua grandeza está em introduzir alguma estranheza ao realismo e à ação. Sua miséria condena tal gênero tão somente a isso.

Pois o cinema possui essa estranha tendência a lidar, por um lado, com seres que permanecem ativos; e, por outro, com sua contraparte. É quando essas criaturas se deparam com o desvanecimento de si mesmas, naquilo que as coloca em contato com seu próprio ser, em uma dimensão tão particular.

Todavia, o horror se prende somente à parcela mais óbvia dessa contraposição, em sua obsessão com a monstruosidade e com a janela por ela aberta no espaço concreto. Nisso, A Substância consiste apenas em um exemplar, entre tantos outros, dessa intenção essencial ao gênero.

 

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