FÚRIA PRIMITIVA (2004) – COMO DEV PATEL USOU A AÇÃO PARA FALAR DE OPRESSÃO E CULTURA

FÚRIA PRIMITIVA (2004) – COMO DEV PATEL USOU A AÇÃO PARA FALAR DE OPRESSÃO E CULTURA

Definitivamente Fúria Primitiva se apoiou em John Wick para sua promoção, e fez certo, ele tem tudo para agradar quem curtiu a saga do Baba Yaga, mas Dev Patel fez sua estreia como diretor mostrando que sabe usar referências, e esse filme toma definitivamente o melhor de Hollywood e aspectos marcantes da cultura e também do cinema indiano, tudo isso pra entregar um filme de ação relevante.

Dev já falou abertamente ser fã do gênero de ação, em particular, os filmes de Bruce Lee. Assim como Keanu Reeves, Lee fez parte de algumas das gerações de anti-heróis solitários que fazem justiça com as próprias mãos no cinema, filmes que têm a vingança como tema central, e é interessante como nós conseguimos ver essas influências sendo desenvolvidas no longa.

No filme, a gente acompanha um rapaz anônimo, às vezes chamado de “Kid” ou “Bobby”, isso é um detalhe legal para quem gosta de Kill Bill (2003), Drive (2011) ou mesmo Waterworld (1995), esse anonimato do protagonista é um belo palco pra surpresas. Kid sobrevive nas ruas de Yatana, uma cidade fictícia paralela a Mumbai, e ganha a vida apanhando em lutas clandestinas… é isso, ele é o saco de pancadas. Mas enquanto isso, ele também vai colocando em prática um plano pra se infiltrar em uma rede criminosa que opera em um bordel de luxo na cidade.

Ele começa por baixo e aos poucos consegue acesso ao bordel como garçom, cada vez mais perto do seu objetivo, que é encontrar um oficial militar chamado Rana, que parece ter uma certa rotina na cobertura do prédio. Enquanto tudo acontece, vemos alguns flashbacks que vão dando peças do passado de Kid e nos permite entender que esse oficial foi responsável pelo massacre da sua aldeia e de sua mãe.

Certo, isso vai ficando familiar. Mas a dinâmica aqui está na tensão da vulnerabilidade do personagem. Ele não é como John Wick, quero dizer, ele sabe lutar, mas sabe melhor ainda apanhar, ele não tem um treinamento militar pesado ou uma habilidade que se destaca. É meio que ordinário.

Durante essa busca por vingança, vemos a cidade fervendo, tem um líder religioso e político ganhando mais e mais influência e claramente ele é uma figura opressora e também quem deu a ordem para Rana detonar a aldeia de Kid. O filme então começa a tecer algumas críticas sociais, sem pressa, criando provocações sobre a alienação da religião, a influência da política, o poder militar, a discrepância entre classes que quase se assemelha aos conceitos de cyberpunk e, ao mesmo tempo a resistência, a diversidade cultural e de gênero.

A tensão vai aumentando e de maneira sutil ele começa a se afastar do que a crítica pregou inicialmente, e abraçar características da cultura e também do cinema de ação indiano, como o crescimento da figura como um “herói”, sua jornada sofrida física e psicologicamente e como ele se apoia na necessidade dos mais fragilizados pra encontrar a sua força de vontade, e também a relação íntima com figuras da mitologia.

Kid cai e então ascende com a ajuda das hijras, uma comunidade hindu que o alimenta e cuida durante um perrengue. Ele rastreia seus inimigos e parte pra vingança em um segundo ato recheado de adrenalina. Dev Patel escreveu, dirigiu, atuou e quebrou uma mão para entregar o filme de ação prometido. Uma história com altos e baixos dramáticos, sem pontas soltas, apesar de carregar emocionalmente em alguns momentos – está tudo bem, isso é uma característica comum em filmes de ação indianos e a experiência permite esse equilíbrio.

A cinematografia é cuidadosa dentro do possível, tem uma ótima fotografia que destaca a cidade e a ambientação, as coreografias são frenéticas e às vezes absurdas, mas estamos prontos para isso. O filme é forte também ao pinçar e misturar aspectos de diferentes cinemas sem causar estranheza no público ocidental, sabendo como usar o melhor de cada um.

E ele se esforça também para falar sobre os dramas sociais e o poder opressor do governo, e dar um tom maior para as comunidades religiosas, como as hijras, uma comunidade, marginalizada pela sociedade e mídia indiana, em que cada pessoa dessa comunidade é “culturalmente definida como nem homem ou mulher. Eles nascem como homens e, por meio de um ritual de transformação cirúrgica (emasculação), tornam-se uma categoria alternativa de terceiro sexo/gênero (…) adoram Bahuchara Mata, uma forma da Deusa Mãe hindu particularmente associada ao transgênero” (Lafont, 2003, p. 193, tradução minha).

Críticos como Siddhant Adlakha ergueram alguns pontos delicados nessa mensagem, que por mais bem-intencionada que fosse, “uso de imagens hindus como um apelo à violência (…) é fundamental para a missão de Kid, resultando em uma dissonância narrativa” (Adlakha, 2024, tradução minha).

Seja como for, esse foi um projeto que enfrentou diversas dificuldades durante a sua produção, mas felizmente chega como um longa que definitivamente poderá agradar diferentes públicos e, quem sabe, ser um primeiro passo para uma carreira, pelo menos interessante para Dev Patel como diretor.

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ADLAKHA, Siddhant. Monkey Man’s Political Critique Misses the Point. Time, 2024. Disponível em: https://time.com/6963482/monkey-man-political-critique/. Acesso em: 01 de maio de 2024.
LAFONT, Suzanne. Constructing Sexualities: Readings in Sexuality, Gender, and Culture. New Jersey: Prentice Hall, 2003.

Autor

  • Washington Albuquerque

    Mestrando em Cinema e Artes do Vídeo (PPG-CINEAV/UNESPAR), pós-graduado em História da Arte (ESTÁCIO DE SÁ), bacharel em Publicidade e Propaganda (UNICURITIBA). Bolsista CAPES-DS. Designer multidisciplinar e filmmaker no Masdon Studio. Game designer na Odd Press.

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