CLOUD (2024): O MARKETPLACE, O RIDÍCULO E O ABSURDO DO CAPITAL DIGITAL
“Esse filme poderia ser a história de qualquer pessoa no Japão atual”, o comentário “zeitgeistico” do diretor Kiyoshi Kurosawa sobre sua própria obra demonstra a expressa factualidade que o realizador quis inserir em “Cloud” (クラウド, Kuraudo).
Representante do Japão na corrida ao Oscar de Melhor Filme Internacional para a premiação de 2025, o longa foi exibido na sessão de abertura do 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, dia 11 de junho de 2025, na Ópera de Arame.
Antes de rodarem “Cloud”, foi passado no telão um vídeo do diretor para o público do evento. Em sua fala, destaca sobretudo a necessidade de pensar os absurdos do mundo atual, e a busca dele por fazer um filme com um nível de realidade na qual a moral é ambígua, e que, ao mesmo tempo, funcionasse como uma produção de entretenimento.
Independente de como Kurosawa compreenda os conceitos de “realismo” ou “entretenimento”, seu resultado final diverte, e consideravelmente. A história de Yoshii, um rapaz pobre que mora em Tóquio com sua esposa (seu maior e único “bem”) e trabalha numa lavanderia industrial, poderia ser comum a revelar o sonho da independência, do desejo de quebrar o ciclo do crescimento corporativo tradicional, porém tal discurso meritocrático é diluído, antes mesmo de conhecermos seus sonhos.
Yoshii é um homem de negócios, e o lema clássico de “não é nada pessoal, são apenas negócios” demonstra a própria contradição do capital de remover a vida produtiva da pessoal, profissional e particular, como esferas separadas da vida. Ele negocia duramente com um senhor pela compra de equipamentos médicos não funcionais a preços irrisórios para revendê-los pelo dobro do preço em sua loja online.
A decisão do protagonista de abrir uma loja com produtos fajutos, falsos, ou simplesmente vendidos como “milagrosos” ou “incríveis” quando não o são, em um marketplace, reflete essa busca por tematizar o “atual” visado pelo diretor. A fala do diretor se linka com sua visão de um nicho crescente no atual momento do capitalismo. Cotidianamente, sou bombardeado por anúncios no Instagram me sugerindo fazer um curso para abrir uma loja em marketplace, entrar no ramo de infoprodutos, ou de dropships, ou consultorias online, ou cursos de como vender cursos, ou criptomoedas, ou apostas esportivas, ou o fundo do poço: casinos online.
É possível que alguma dessas formas de levantar uma graninha já tenha chegado até você por influência de famosos, seja por influencers de nichos e públicos variados ou os artificialmente ascendidos por impulsionamento das empresas que eles detêm e/ou representam. A vida de Yoshii é a busca por uma independência e ascensão financeira, dispor de uma melhor qualidade de vida para si e para sua esposa, e a independência é independente da eticidade ou legalidade dos meios.
Os takes longos, com cortes que não “cortam” o tempo, mas o faz seguir cronologicamente, cinema como essa força física deleuziana de espaço que sempre busca mais espaço, suspende as ações, a tensão do banal e de uma vida voltada para o nada. A espera de algo acontecer, como tantos desejam. Yoshii resolve fazer algo acontecer, e as consequências surgem.
O filme se torna um thriller quando um grupo de pessoas escamoteadas ou afetadas de alguma maneira por seu modelo de negócios fraudulento se une para persegui-lo e matá-lo. O que começa como suposta vingança moral pela enganação mas se torna puramente a busca visceral pela violência. O ex-chefe de Yoshii é um assassino psicopata, o homem enganado por ele no início do filme se mostra desejoso por caçar alguém ao dizer “sempre quis fazer isso” quando sai em busca de Yoshii com uma espingarda na mão, o sonho do oprimido de oprimir.
Tais personagens destacam um mundo do absurdo, a irracionalidade violenta e compulsória, recalcada por um mundo administrado que encontra liberdade com um motivo, como dito anteriormente, moral de início, mas que revela o desejo de revidar a realidade violenta com violência. A moral se dilui, toda moralidade pretensa se dilui em violência, o sistema é um fluido de graxa e dados, ser humano é colocar sangue na mistura.
Como explicou Tarcizio Silva (IBPAD), na mesa temática “Raça, gênero e interseccionalidades na produção midiática: perspectivas teóricas, metodológicas e empíricas”, durante a 34º Encontro Anual da Compós, o marketplace é o modelo de negócios que todas as grandes companhias de vendas multissetoriais estão aderindo, a Meta com o Facebook Marketplace, Amazon, Mercado Livre, Magalu, etc. Um modelo que agrega vendedores e seus comércios no site da companhia, onde reinaria a oferta e demanda, o livre mercado. A tendência monopolista do capitalismo se reapresenta quando as companhias donas das feiras virtuais utilizam os algoritmos dos seus marketplaces para detectar o que está sendo vendido, por quem, buscado por quem, os preços, estratégias de promoção, e aprimora essas técnicas para vender através de seus próprios comércios dentro do marketplace. O uso da racionalidade para sabotar os próprios feirantes que ocupam o espaço comercial oferecido pela empresa. Uma técnica tão antiga quanto avançada, anterior ao capitalismo e perfeitamente alinhada ao capital.
Yoshii e seus odiadores se assemelham pela lógica de caça e caçador como naturalização das relações predatórias de uma sociedade capitalista. Como destacado na carta de Marx à Engels sobre Darwin, como a competição, a luta pela vida, devorar ou ser devorado, percepções da consciência humana moldadas a partir de sua relação com o mundo derivada do modo de produção das condições de vida e que o humano imputa como sendo a respeito da natureza, colocar humanidade na natureza para então naturalizar as relações sociais humanas. Yoshii adquire produtos a baixo custo passando a perna nos outros, ou simplesmente comprando itens falsos, tira dos outros por meio de argumentos traiçoeiros e vende com vultosas margens de lucro online. Sobrevive quem se adapta. A figura do caçador alegoriza a ordem natural das coisas em papéis agora invertidos. Yoshii se torna presa e precisa correr e se esconder. Depois inverte-se a ordem novamente, após matar pela primeira vez, fica gradativamente mais fácil, não necessariamente prazeroso, apenas o que deve ser feito, o necessário, apenas negócios, o que era natural a ser feito.
A mediação do mundo dos negócios amoral-moralizado e a violência sintomática irracional é a inserção do “Sindicato”, a Yakuza, na figura de Sano, assistente de Yoshii que o admira com sinceridade e o incentiva a continuar buscando lucro até o fim. A Yakuza representa o crime organizado como parte necessária para manutenção da ordem social, para que o jogo seja jogado e que as regras sejam seguidas. O errado como parte necessária para realização do “correto”, ou ao menos o comum, ordinário, vivido e experienciado como realidade usual.
“Cloud” é sobre o absurdo e o ridículo. O absurdo e ridículo de nossas formas de trabalho e relações comerciais que precisamos tomar para sobreviver. O ridículo da mulher materialista que só ama o homem pelo dinheiro e quer seus cartões de crédito. O ridículo do amigo malandro que quer se vingar de Yoshii por ter feito sucesso onde ele falhou. O ridículo dessas novas e velhas formas de acumulação de capital e reserva de valor. O filme se torna ridículo e quer ser ridículo, quer que você o veja como ridículo. O mundo é um absurdo e a arte reverbera isso como os ecos dos tiros dados na fábrica abandonada. O velho mundo industrial acabou e o capital produtivo deu lugar ao especulativo.
Yoshii é um peixe-pequeno, que compra e revende, ao final está liso e precisa desesperadamente vender action-figures de uma personagem japonesa usando roupas de colegial para colecionadores, sua tentativa de se salvar e tirar uma fortuna. É ridículo. Após acabar o tiroteio e sua facilidade crescente de matar por apenas negócios cessar, seu ato é abrir o celular e comemorar as vendas das action-figures. Esse é o mundo de Yoshii, o mundo não da mercadoria exposta, mas sim o mundo das caixas, galpões e armazéns, a própria casa do protagonista se torna uma local de logística, como normalmente ocorre com pequenos empreendedores iniciantes, porém um espaço cinzento, de cimento cru e móveis de metal gélido e fino, um local para uso impessoal e não um lar. O filme apresenta a logística de armazenamento, venda e transporte, uma antifetichização dos processos que se torna alienadora por perder o propósito. Qual a motivação disso tudo? Com a morte de sua esposa interesseira e golpista, parece respondido que na objetificação dela Yoshii colocava todo sentido de sua vida, e o mundo administrado revela que você pode conseguir coisas, mas não pessoas.
Ao final, nos é entregue um céu carregado, escuro e trovejante, uma tempestade se aproxima. A escuridão de um mundo de negócios cada vez mais obscuro, um futuro que se fecha, que se torna invisível de compreender o que é feito, legal, real e falso. A ocultação da produção e da circulação, dos dados, dos algoritmos, da previsibilidade para fins de nada. Consumo sem conteúdo. Abstraído de propósito e sentido, preenchido por processos. Esse é o presente. A nuvem possui tudo e não possui nada.
Autor
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-UFPR), vinculado à linha de pesquisa Comunicação e Cultura; Mestre em Comunicação (PPGCOM-UFPR); Bacharel em Publicidade Propaganda (UFPR). Integrante do NEFICS - Núcleo de Estudos de Ficção Seriada e Audiovisualidades (UFPR/PPGCOM-UFPR/CNPq). Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Bolsista CAPES-DS. Escritor, Roteirista e Redator. Autor da coletânea de contos "O Insosso e o Insólito entre os Pinheirais". Escritor da Revista Película (ISSN: 3085-6183). Pesquisador nas áreas de: Comunicação; Cinema; Cultura; Narrativas Audiovisuais; Narrativas Midiáticas e Comunicação Política.
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