A VOZ DE DEUS (2024) – PASTORES MIRINS E A TEOLOGIA DA ETERNA-PROMESSA

A VOZ DE DEUS (2024) – PASTORES MIRINS E A TEOLOGIA DA ETERNA-PROMESSA

No dicionário futebolístico, “eterna promessa” diz respeito àquele jogador, geralmente da base, adolescente, criança, jovem, que causou grandes expectativas referentes ao seu futuro profissional, um futuro craque, possível referência para uma geração inteira de atletas, torcedores e amantes do esporte. Mas que no final nunca despontou, nunca foi além, não entregou o potencial que parecia existir. Decepcionou no que se referia às expectativas, muitas vezes abandonando sua carreira cedo, pela porta dos fundos ou em um processo de decadência.

Produzido ao longo de mais de 10 anos, o documentário “A Voz de Deus” (2025) tematiza as eternas-promessas na teologia neopentecostal em sua forma mais contemporânea: os pastores-mirins, um fenômeno cultural, midiático, religioso e econômico que é profundamente explorado por igrejas, outras formas de empresa, e famílias.

Os influencers neopentecostais Daniel Pentecoste (atualmente adulto) e João Vitor Ota (atualmente adolescente) expressam uma tendência de formalizar lideranças religiosas midiáticas desde a mais tenra juventude, desde os 6 ou 7 anos, geralmente. As promessas de serem líderes do evangelho em escala nacional e até internacional, como confessa o pai de Daniel, enchem os olhos de famílias comuns de trabalhadores. A provisão por meio da obra, a descoberta de um universo dos produtos, da mercadoria, DVDs, CDs, camisetas, eventos justificam a bem-aventurança futura a partir da pregação.

Essa “teologia da prosperidade”, elaborada como conceito de que a vontade divina do Deus pai-criador é a de que seus filhos sejam abençoados e recompensados com bens materiais por sua fé e cumprimento dos ensinamentos e moral cristã. Como explicado exaustivamente por Max Weber em Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, o protestantismo (do qual deriva o neopentecostalismo enquanto último estágio, mais recente) é uma expressão de reforma e revolta contra a doutrina católica, e como tal se adapta para uma nova realidade material e econômica da história. Ou seja, se o catolicismo representou o modo de produção feudal e sua miséria e concentração de poder como vontade divina, o protestantismo acompanha o mercantilismo e posteriormente o capitalismo como meio de produção inicialmente descentralizado e com possibilidade de ascensão social para uma certa camada da sociedade que consegue se tornar burguesa, ou ao menos pequeno-burguesa.

O mundo das mercadorias de crianças pastores é um mundo voltado para mercantilização de seus sermões e discursos ao final dos cultos. A disponibilização de CDs e DVDs de Daniel, na época dos anos 2000, exemplifica o uso da mercadoria por parte da religião e vice-versa. Segundo Marx, o homem olhou para o céu em busca de respostas e encontrou apenas seu próprio reflexo; e Feuerbach argumenta que a religião é uma “antropologia invertida” (colocamos nossas características sociais humanas de maneira superlativa em deus até o ponto que não nos reconhecemos nele – alienação), então nada faz mais sentido do que a religião se adequar para o contexto econômico-social que rege as relações humanas atualmente e nos últimos séculos.

A venda de produtos no templo, que pode ser debatido moralmente pelo cristianismo com a clássica passagem bíblica na qual Jesus se ira contra os comerciantes no templo e destrói suas tendas e expositores, infelizmente não nos ajuda muito aqui. Argumentar que o cristianismo responde a essa “problemática” em seu próprio dogma é ignorar as bases materiais da religião, e sobretudo o que Nietzsche chama de “aranhização” da religião em sua obra O Anticristo. Segundo o filólogo alemão, o niilismo, a descrença ou não-crença em valores em geral, transforma a religião em abstração, em “coisa-em-si”, sem fundamentação ou elaboração necessária, se bastando como conceito vazio. O neopentecostalismo de uma sociedade de capitalismo neoliberal reverbera essa heterodoxia do cristianismo, cuja dogmática se torna cada vez mais abrangente e oportuna, cada pastor diz uma coisa, interpreta a bíblia de um jeito, etc. O cristianismo não pode ser resgatado pelos cristãos, o único cristão morreu na cruz.

E a função do documentário é expor, através de seus personagens Daniel e João Vitor, um novo processo de adaptação do fenômeno religioso. Religião é a venda de um discurso, de promessas de que certas condutas e crenças levarão a sua vida melhor aqui no plano material e no sobrenatural, e os pastores-mirins são uma nova forma de se vender tal meritocracia retórica, mas esses jovens (e suas famílias) precisam receber algo em troca.

Existe uma certa crueldade. Daniel, já adolescente em certo ponto do documentário, ressalta a necessidade de não pregar por dinheiro, e seu pai possui orgulho e ressentimento da carreira religiosa, da promessa de seu filho liderar multidões crentes não ter se concretizado. A família que vivia de produtos voltou ao trabalho, Daniel, como caixa de um supermercado de bairro. A busca por ser melhor, representar algo melhor. Onde havia prosperidade e bons frutos, hoje é terra salgada.

Nesse ponto, surge o diálogo mais importante do filme todo, no qual Daniel reforça que seus amigos do futebol brincaram sobre como ele era ruim no esporte. De que ainda bem que ele não escolheu continuar jogando na escolinha de futebol quando era criança, pois não teria futuro nenhum. Mais de 98% dos jogadores de futebol profissional no Brasil recebem ATÉ um salário mínimo como remuneração, ou seja, muitos recebem menos ou até mesmo nada. O funil do jogador de futebol é a lógica do infante teólogo. Assistimos jogadores medianos de grandes clubes terem remunerações, patrocínios e luvas milionárias, vultosas, que ocultam uma realidade de miséria da maioria, uma massa de sonhos frustrados. Se isso expressa a contradição entre ideologia e práxis geral do capitalismo, a promessa continua movendo sonhos e decepções.

O pai de Daniel ainda acredita que seu filho poderá retornar a ser um pastor, porém joga suas esperanças maiores na eleição de Bolsonaro, na eleição de 2018. A promessa entre quem você era e quem você se tornou. A frustração do pai tanto por Daniel (pastor mirim famoso nacional) quanto por si (empresário do filho famoso) com o que a vida deles se tornou encontrou voz numa nova solução messiânica. O pai indignado com o culto de Daniel que foi cancelado, em contraposição com o alívio do filho que não tinha vontade de dar sermão após horas de trabalho. O fator psicológico do discurso religioso. “Sou a voz de Deus nas situações cotidianas”, brada a criança em seu sermão.

Quando Daniel (com 16 anos), conhece João Vitor (com 6-7 anos), no 10º Gideõeszinhos, congresso voltado para pastores-mirins, conecta duas gerações, causa-consequência de um fenômeno em contextos diferentes. João Vitor com suas redes sociais de milhões de seguidores pode compartilhar seus sermões sobre adultério e fornicação (que nem entende direito o sentido dessas palavras) e demais discursos repetidos por sofismas e palavras vazias, mensagens de que você precisa ser melhor, repetição sem entender o conteúdo, autoajuda, desenvolvimento pessoal. Apenas um “sermão”, explicar que você está errado e precisa ser melhor, sem nenhum conteúdo sobre a religião ou de como realizar tal missão.

Mas João Vitor é outra geração, no corte agora aborrecente (entre 11 e 12 anos), se preocupa com as aparências, vaidoso, só como um recém-adolescente que percebe a si mesmo em seu ápice egoico. Malha na academia, usa roupas da moda e varia entre presenças em cultos ou como entretenimento de baixo-escalão num evento cristão para crianças. Mascarado e fantasiado, dança com outras crianças na hora do louvor infantil. Simultaneamente, recebe roupas ou vai até comércios para anunciar comércios e produtos em seus stories e posts, publicidade abençoada como últimos recursos para uma carreira de evangelista.

A decadência lenta, acinzentada, transpassa os semblantes dos resultados daquelas promessas. Sobretudo nos rostos de seus pais. O pai de João Vitor liga para um pastor brasileiro conhecido que mora em Boston, tenta articular uma conversa sobre como gostaria de ir pro país e realizar seu “sonho americano”, o que conecta com os estudos de inglês de seu filho. Estagnar e retrair, após mobilizar toda uma vida pela carreira de seu filho para que esse encalhasse como uma “eterna promessa”, um e se.

Se o seu pastor-mirim te deu uma reforma na casa, ajudou sua família a largar seus empregos para se concentrarem na gerência de uma carreira, agora o mundo é outro, o que era fofo envelhece, deixa de ser novidade, começa a ter espinhas na cara e a usar aparelho. Adolescente é um bicho esquisito, estranho e desengonçado, não é tão vendável. Em um modo de consumo de imagens e conteúdos cada vez mais engajado na novidade e tendência, a fidelidade não parece um forte para esse tipo de produto, e não existe ninguém mais infiel que um crente.

Em 2022, Daniel está casado e com duas filhas, afastado de seu pai que foi cada vez mais extremado pelo bolsonarismo, chora quando sua família vai viajar para Brasília e ele precisa ficar em São Paulo para trabalhar. Vê Lula ser eleito, as igrejas militarizadas cantando hinos religiosos com crianças fardadas marchando. Lembro quando eu era criança e tive uma camiseta em camuflagem escrita “Exército de Cristo – aliste-se já”. O extremismo de direita nunca explode de cara, é um longo pavio de sinais e sintomas. O “Senhor dos exércitos”, repetido algumas vezes em Salmos e Isaías, é tão válido para uma sociedade tribal da região da Palestina quanto na sociedade de massas da periferia de Brasília. A guerra é um bom negócio e ter um inimigo é central para todo discurso conspiracionista.

O próximo passo de Daniel é construir sua própria história, agora isolado, sem o apoio de deus, o que temos são as pessoas que amamos.

João Vitor, já adolescente (15-16 anos), é cobrado constantemente, aparece esgotado, sobrecarregado, o trabalho infantil de um produto. No 18º Gideõeszinhos um dos temas apresentados é a importância do online para espalhar a palavra de deus. Seu pai expõe roupas formais infantis na saída do culto, vende apenas uma peça a noite toda.

Não vingou, não chegou entre os grandes, não foi contratado por um gigante da Europa. Os olheiros começaram a virar os rostos pro outro lado. Mas que golaço que fez na pelada segunda.

 

Autor

  • Victor Finkler Lachowski

    Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-UFPR), vinculado à linha de pesquisa Comunicação e Cultura; Mestre em Comunicação (PPGCOM-UFPR); Bacharel em Publicidade Propaganda (UFPR). Integrante do NEFICS - Núcleo de Estudos de Ficção Seriada e Audiovisualidades (UFPR/PPGCOM-UFPR/CNPq). Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Bolsista CAPES-DS. Escritor, Roteirista e Redator. Autor da coletânea de contos "O Insosso e o Insólito entre os Pinheirais". Escritor da Revista Película (ISSN: 3085-6183). Pesquisador nas áreas de: Comunicação; Cinema; Cultura; Narrativas Audiovisuais; Narrativas Midiáticas e Comunicação Política.

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