Um gay falando de um gay dentro de uma narrativa assassina: o dia que Ryan Murphy foi longe demais

UM GAY FALANDO DE UM GAY DENTRO DE UMA NARRATIVA ASSASSINA: O DIA QUE RYAN MURPHY FOI LONGE DEMAIS

É fato que Ryan Murphy é o queridinho de Hollywood. Sua carreira, como a conhecemos hoje, começou em 1999 com uma série quase desconhecida no Brasil: Popular. Uma produção que tentou ser o que Glee se tornaria mais tarde — e que, de certa forma, serviu de referência para Rebelde Way, a versão argentina (não a mexicana, que conhecemos como RBD).

Voltando a Murphy: se ele foi amado, não foi por acaso. Em 2009, inaugurou aquilo que nós, crianças viadas dos anos 90 já em nossos 20 e tantos, precisávamos — Glee. A série reuniu o melhor do pop, do rock e, claro, do próprio gay que habita(va) Murphy. Dois anos depois, em 2011, ele reinventou o terror televisivo com American Horror Story, conectando medo e estética de um jeito que só um mestre absoluto, já consagrado na época, poderia fazer. Dali em diante, Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan se tornaram o trio de ouro da TV americana — uma espécie de “nova Shonda Rhimes”, só que com todos os privilégios de homens cis, brancos e poderosos dentro do mundo masculino do audiovisual.

Com o tempo, Murphy mergulhou mais fundo no terror — mas agora no terror real. Em Dahmer, retratou os crimes de Jeffrey Dahmer em dez episódios intensos. Era uma história real, repleta de outras histórias: dezesseis garotos assassinados entre 1978 e 1991. O texto era forte, a câmera precisa, e, claro, havia Evan Peters. Tudo no lugar. Grotesco como devia ser.

Mas o salto seguinte foi mais estranho. Em Monsters: The Lyle and Erik Menendez Story, ambientada em 1989, Murphy traz à tela dois irmãos que mataram os pais — e sugere, ainda que de forma subentendida, uma relação incestuosa entre eles. Não era explícito, mas bastavam dois neurônios para captar o subtexto.

A terceira temporada, recentemente lançada na Netflix, marca a saída de Murphy da cena principal. Ele entrega o comando à sua produtora e confia o projeto a um velho parceiro: Ian Brennan. É dele o crédito como criador da narrativa de Ed Gein: The Real Monster, um salto temporal para trás (não apenas na data) os anos 1950. O foco é Ed Gein, o assassino real que inspirou alguns dos maiores terrores da cultura pop.

E é aqui que tudo começa a ficar surreal. Como um homem gay consegue comparar um assassino sádico, heterossexual e com graves transtornos mentais a um ator homossexual dos anos 1960 que sofria com a repressão à própria sexualidade? Pois é exatamente o que acontece. Murphy, Brendann ou seja lá quem tocou naquele roteiro misturou Ed Gein (a história real de um criminoso) com a trajetória de Anthony Perkins, o ator que interpretou Norman Bates em Psicose (1960), filme de Alfred Hitchcock baseado no livro de Robert Bloch — ambos inspirados na vida de Gein, que, pasmem, ainda estava vivo naquela época.

Sim, Hitchcock era um gênio estranho. Mas Murphy (ou Brennan, ou quem quer que tenha escrito essa terceira temporada da série da Netflix) atravessa a linha tênue entre o real e o imaginário.

Perkins, de fato, foi afetado por Psicose.

Nos bastidores do filme e de sua própria vida, lutava contra sua sexualidade, e, embora homossexual, casou-se com uma mulher e teve dois filhos. A série, no entanto, o coloca em uma sessão de terapia afirmando que “ser gay é monstruoso” — algo dito verbalmente, enquanto a montagem alterna flashbacks e planos que fundem Perkins e Gein em um mesmo corpo, um mesmo delírio.

Quem entende de comunicação ou semiótica sabe o peso simbólico dessa associação — e o quão errada, grotesca e perigosa ela é. Talvez Senhorita Bira explicasse isso melhor do que eu. Porque, embora fã de Murphy, só consigo sentir medo, pavor e nojo ao ver um criador gay colocar lado a lado um homem cis, assassino e psicótico e outro que sofreu por ser gay em plena década de 1960.

Resta apenas um consolo: saber que pessoas como bolsonaro (com b minúsculo mesmo) e sua trupe não têm capacidade cognitiva para entender tudo isso e fazer o que adoram — distorcer o roteiro entre o real e o imaginário, e dizer que “gay é isso aí”, um psicótico sexualmente perturbado e obcecado pela mãe.

A nota é dó. Porque dói.

Autor

  • Renan Dalago

    Publicitário com segunda graduação em Letras - Português/espanhol e suas respectivas literaturas pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. Especialista em Comunicação, Semiótica e Linguagens Visuais e Psicologia Analítica Junguiana. Mestre em Poéticas da Modernidade. Doutorando em Comunicação, na linha de pesquisa Mídia e Cultura, pela Universidade Federal de Goiás, bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG). Amante da sétima arte, da psicanálise junguiana, seus arquétipos e, também, da semiótica. Mistura tudo isso para compreender o mundo, a sociedade, a comunicação, o cinema, a literatura e as inter-artes.

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