SALOMÉ (2024): A ETÉREORIZAÇÃO DO TESÃO
Exibido pela primeira vez em Curitiba durante o 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba, o longa, vencedor de Melhor Longa-metragem (Júri Oficial e Júri Popular) e de outros seis prêmios no 57º Festival de Brasília, apresenta uma leitura recifense e queer da peça de Oscar Wilde.
“O mistério do amor é muito maior que o mistério da morte”, a citação abre a narrativa de Cecília, modelo de sucesso em São Paulo que retorna à periferia de Recife para passar o natal e o ano-novo com a mãe (o famoso “êxodo queer” de final de ano). O mistério do amor a arremata com o encontro de João, seu vizinho de infância com o qual se encanta e se envolve afetivo-sexualmente. “Queria que o filme fosse a experiência de sentir tanto tesão por alguém e isso quase abrir um portal para outra dimensão”, foram as palavras do diretor André Antônio no bate-papo com o público após a sessão. A experiência de transporte para outra realidade parece uma analogia adequada, contudo, ouso dizer que acontece um fenômeno diferente: a etéreorização.
A mescla dos termos etéreo (tornar sublime, elevar) e eterização (inalação de uma mistura de ar e vapor de éter) resume o caminho para Cecília, cujo conflito principal é “estar com tesão”, nas palavras do diretor. A alegoria escolhida para simbolizar essas sensações é o loló, e do especial, verde radioativo e licoroso, um artifício que o realizador explicou que serve para mostrar visualmente as sensações, sobretudo a libido do início de um relacionamento.
Esse “mostrar visualmente as sensações” não se restringe às meras ilusões/alusões após Cecília e João baforarem, sendo um modelo de extensão da própria sinergia entre personagens e o tempo, o som, as cores e o banal. A lógica da brisa estica a experiência cinemática, somos levados por takes que parecem se prolongar, com diálogos em vozes arrastados, encaradas longas, sons altos de roupas, goles, respiros, com a escolha majoritária de primeiros-planos para momentos-chave que nos fazer contemplar pessoas e coisas, como se entrássemos no olho do personagem ao invés de seu olhar.
Cecília tem os olhos acobertados por uma luz forte quando o sol rebate nos pingentes de metal no chinelo de João. Sua mãe encara com fervor e intensidade a figura de Nossa Senhora. Somos convidados não a ficarmos chapados e com tesão (ainda que funcione para isso), mas sim por desejar que aquele personagem apresente seu desejo para nós. A apreciação pelo desejo alheio como a experiência voyeurista de entorpecimento.
O regime de atuação em sua abordagem naturalista auxilia a experiência, o falar com naturalidade perpassa as diferentes necessidades do filme: drama, humor, tesão e o fantástico; cada parte possui sua chave de atuação, contudo a naturalidade das falas reforça o comum. Como mencionado, as conversas lentas, respostas demoradas, pausadas preenchem o tempo com a calma do indivíduo frente ao acelerar do mundo ao redor.
O mundo ao redor é desfragmentado em Salomé. Seus fragmentos são como pepitas de ouro em meio ao carvão, impossível de desviar o olhar, e os objetos servem a isso, tanto o relicário religioso que promete um rumo moral, quanto os objetos cotidianos desprovidos de magia, mas providos de desejo. Se “sentimentos são colocar magia nas coisas”, segundo Sartre, aqui o tesão é um sentimento mais do que mágico, é transcendental.
O etéreo do éter que acompanha a vida sexual e amorosa entre Cecília e João não é a sustentação de uma relação a partir do loló. Cecília sente não necessitar mais disso para sustentar um amor. João não pode abandonar a droga nem sua vida, ganha grana produzindo conteúdo adulto fetichista para o que chamei de “cenocrias” (cenobitas com roupas streetwear). Os alienígenas o contratam para que seus vídeos sexuais atraiam Salomé, a figura bíblica responsável pela execução de João Batista, que simboliza o desejo, o desinteresse, o tesão, a luxúria, entre outros conceitos deliciosos.
Cecília é Salomé, e os aliens mantêm João refém da relação de produção e trabalho para atrair a pessoa certa que reencarnará a figura bíblica. Se na mitologia cristã, Salomé condena João Batista, uma Cecília/Salomé condena apenas João à morte e a ter seu corpo-bolo devorado por ela.
A reimaginação recifense de Salomé é uma realidade autóctone e universal brasileira. A mãe religiosa, as fofocas das senhoras da rua, os conflitos familiares, as relações e afetos construídos em uma vivência queer, noturna, diária. Os elementos e ambientes banais, aos quais somos lançados e identificados por nossas próprias experiências, são configurados como relíquias para contemplação, lenta e demorada. O culto ao tesão rotineiro é expresso com o maravilhamento do supérfluo, isso é estar com tesão.
O sexo é lambido, chupado, próximo; aproximar é a chave, aproximar e cortar barreiras, conectando-as pelo desejo até estarem demasiadamente próximas e penetradas. Reconstruir as diferentes esferas relacionais da vida de qualquer jovem que se sinta deslocado, impulsionar essa imaginação com um mundo comumente brasileiro, conflituoso, religioso, alternativo, comum, libidinoso e amoroso como sendo também a realidade queer no Brasil.
Inalar desejo que preencha todo ar dos pulmões e bombeia sangue por todo corpo, corpo utilizado para o trabalho, desfilar, gravar, rezar, desejar, ter fé no divino ou no divinamente humano como o outro objeto de desejo. Sentir tesão é um drama que atravessa também todo dia a dia, e também extrapolativo como uma ficção científica que repensa a realidade a partir da dialética do que se é e do e se.
O verde como protagonista pictórico no filme acabou sendo uma sugestão da direção de arte, porém, se quisermos significar como manda a experiência humana, podemos dizer que verde nesse caso é a esperança de envolver e ser envolvida por quem desejamos. O tesão proposto é o que tira a concentração e faz a gente mudar todos os planos do dia e da vida por quem queremos. É transformar a realidade ao nosso redor, pois cada baforada lateja o corpo com uma leve dor e endurecimento. Transforma a ponto de nos fazer virar outra pessoa, irreconhecível, até concretizarmos o ato de termos o outro-desejado dentro de nós ou estarmos dentro dele.
Não sei qual é o mistério da morte, nem o mistério do amor e se esse é tão maior que outro, mas posso afirmar algo: amor e morte só podem ser sentidos pelos vivos.
Autor
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-UFPR), vinculado à linha de pesquisa Comunicação e Cultura; Mestre em Comunicação (PPGCOM-UFPR); Bacharel em Publicidade Propaganda (UFPR). Integrante do NEFICS - Núcleo de Estudos de Ficção Seriada e Audiovisualidades (UFPR/PPGCOM-UFPR/CNPq). Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Bolsista CAPES-DS. Escritor, Roteirista e Redator. Autor da coletânea de contos "O Insosso e o Insólito entre os Pinheirais". Escritor da Revista Película (ISSN: 3085-6183). Pesquisador nas áreas de: Comunicação; Cinema; Cultura; Narrativas Audiovisuais; Narrativas Midiáticas e Comunicação Política.
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