MOSTRA CHARADA: QUANDO A ÚLTIMA LOCADORA DA PERIFERIA VIRA SALA DE CINEMA E CENTRO CULTURAL
Em meio às transformações do mercado audiovisual e ao desaparecimento quase total das videolocadoras no Brasil, um espaço segue resistindo com brilho próprio na Zona Leste de São Paulo. Fundada em julho de 1995 por Gilberto, a Locadora Charada surgiu de um gesto de coragem e paixão. À beira dos 40 anos, ele decidiu abandonar a carreira de administrador financeiro, com bom salário e estabilidade, para se arriscar em um projeto movido por amor ao cinema.
O início foi desafiador: dúvidas, incertezas e o peso de enfrentar um mercado competitivo. Ainda assim, a locadora prosperou, e logo se tornou mais do que um espaço de aluguel de fitas VHS. Tornou-se um ponto de encontro de jovens e amantes da arte, um lugar onde as conversas, debates e trocas culturais sempre tiveram espaço — mesmo quando a rotina intensa de atendimentos dificultava esses momentos. Com o tempo, o que prevaleceu foi justamente o espírito de encontro e comunidade.
A resistência da Charada nunca foi simples. Manter as portas abertas em meio ao fechamento de quase todas as locadoras da capital paulista exigiu criatividade. Para além das prateleiras de filmes, Gilberto passou a promover eventos musicais, noites de stand-up e até festivais de curtas, transformando o espaço em um verdadeiro centro cultural. Essa reinvenção foi o que manteve viva não só a locadora, mas também um pedaço da memória cultural da periferia paulistana.
Foi nesse contexto que nasceu a Mostra de Curta-Metragens do Centro Cultural Charada. A ideia surgiu de forma orgânica, a partir de um documentário realizado por um grupo de estudantes de cinema sobre a própria locadora. O filme pretendia registrar a história de resistência do espaço, mas a experiência foi além: os jovens decidiram criar um evento permanente que celebrasse a produção audiovisual independente e desse visibilidade a cineastas periféricos.
Desde então, a Mostra se consolidou como um marco no calendário cultural da região. Realizada bimestralmente, ela já trouxe edições temáticas que ampliam o debate e a representatividade, como a dedicada a Diretoras Mulheres e ao Protagonismo Feminino. A organização é fruto de um trabalho coletivo e colaborativo: Vitor, Scheffe, João, Caetano e Melissa dividem as tarefas de curadoria, divulgação, parte técnica e produção. Mais do que colegas de equipe, são amigos que se conheceram na faculdade e compartilham o mesmo sonho de fazer o cinema pulsar além do centro da cidade.
O início, contudo, foi turbulento. A primeira edição, em 2024, enfrentou uma chuva intensa, atrasos e falhas no som e na projeção. Ainda assim, o público compareceu: mais de 40 pessoas lotaram a sala improvisada e, ao final, o brilho nos olhos de Gilberto deixou claro que a experiência precisava continuar. E continuou.
A sexta edição, realizada em dois dias – 29 e 30 de agosto de 2025 – foi um divisor de águas. Contou com 10 curtas exibidos, duas bandas ao vivo (Alma de Banza e Sonial) e um recorde de público: mais de 45 pessoas, entre moradores da região e equipes de filmagem. Como já virou tradição, após cada exibição os realizadores subiram ao palco para dialogar com o público, criando uma atmosfera de troca única e calorosa.
Hoje, a Mostra já se prepara para a sua sétima edição, com tema dedicado ao terror, mantendo aberta a proposta de oferecer um espaço de experimentação e pertencimento para diferentes narrativas.
Mas o projeto vai além da exibição de filmes. Ele carrega a ambição de quebrar o monopólio cultural de São Paulo, historicamente concentrado no centro e na Zona Oeste, onde estão os espaços boêmios e as grandes casas de show. A Mostra propõe o contrário: levar o público ao coração da Zona Leste, mostrar que ali também há efervescência criativa, e, acima de tudo, oferecer cultura gratuita e acessível para quem vive na periferia.
Para os organizadores, o cinema não é apenas arte. É um ato de registrar, mover, expandir e transformar. Uma criança com uma câmera pode contar sua própria história, mostrar seu olhar e seus sentimentos. E é justamente na Mostra Charada que esse olhar ganha tela, que essas narrativas encontram público.
Mais do que uma sala de exibição improvisada, a Mostra se tornou um salão de sonhos coletivos, um espaço onde o cinema periférico encontra reconhecimento, onde criadores independentes se unem, e onde a cultura resiste. Como definem seus organizadores, a Mostra Charada é, acima de tudo, o cinema da periferia — vivo, diverso e transformador.
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Revista independente, em formato blog, sobre cinema e audiovisual. Selo Editorial Coletivo Cine-Fórum®. Cursos acessíveis para amantes da sétima arte.
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