EXTERMÍNIO – CACHOEIRA DO SUL: UM CINEMA URGENTE QUE ESCUTA E DENUNCIA
Lançado em 2021 pela Lança Filmes e exibido no Festival de Gramado, Extermínio – Cachoeira do Sul, dirigido e escrito por Mirela Kruel, é um documentário que pulsa urgência, dor e resistência. A obra se constrói em torno do assassinato brutal de Nickolle, uma jovem trans em Cachoeira do Sul, e se transforma em um grito por justiça e visibilidade para a comunidade trans no Brasil, o país que lidera o ranking mundial de assassinatos de pessoas trans.
Em conversa com estudantes da PUCRS, a diretora definiu seu trabalho como um exemplo de “cinema urgente”, em sintonia direta com a gravidade da violência sofrida por pessoas trans no país. A urgência aqui não é apenas estatística: ela é política, necessária e inadiável.
Inicialmente, o projeto tinha como foco a ideia de retratar mulheres trans fugindo de um extermínio. A proposta era abordar, de forma ficcional, a violência sistemática contra essas mulheres. No entanto, ao se mudar para Cachoeira do Sul e ser atravessada pela história real de Nickolle, a diretora percebeu que era preciso conferir centralidade a esse caso real como forma de representar uma tragédia coletiva. Nicolle tornou-se o centro da narrativa, não apenas por sua história individual, mas por tudo o que ela simboliza: a vida interrompida de tantas outras mulheres e pessoas trans.
O filme mescla cenas encenadas com depoimentos reais, carregando tanto elementos documentais mais clássicos quanto elementos mais experimentais da ficção. As partes roteirizadas foram criadas com intenção inicial de compor uma obra mais ficcionalizada, mas a maioria do filme é composta por relatos autênticos de amigas e familiares de Nickolle. A própria diretora afirma que o filme é “a fala das mulheres trans” por isso, por elas, ele é contado. São vozes muitas vezes silenciadas, mas que, neste trabalho, encontram um espaço de escuta.
Mirela se coloca, enquanto diretora e roteirista, num lugar de escuta, e posiciona a câmera como um olhar respeitoso sobre as histórias contadas. Essa escolha revela sensibilidade e ética no trato com um tema tão delicado. Entre os momentos mais simbólicos do filme, destaca-se uma cena em que duas personagens trans dançam em frente a uma igreja ao som de “Ave Maria”. A sequência encerra com a imagem do topo da igreja, mostrando ali a presença de Deus e de Nossa Senhora, olhando pelas pessoas trans, que tantas vezes são marginalizadas até mesmo nos discursos religiosos.
Apesar de seu enorme valor temático e simbólico, Extermínio – Cachoeira do Sul sofre de certa dispersão narrativa. A tentativa de abraçar múltiplas abordagens: ficção, documentário, estética artística, denúncia política, acaba por diluir o foco principal, que deveria ser a trajetória de Nickolle. Em alguns momentos, as cenas criadas se destacam por seu caráter altamente cinematográfico, enquanto as entrevistas mantêm um tom mais direto e cru, o que pode causar certa ruptura estética. Faltou, talvez, um meio-termo ou uma transição mais fluida entre os formatos.
Ainda assim, este é um filme que precisa ser visto. Especialmente por quem vive no Rio Grande do Sul, pois nos obriga a enxergar que o extermínio de pessoas trans não é uma realidade distante, ele acontece perto de nós, em nossas cidades, nos nossos bairros.
A conversa com a diretora após a exibição foi extremamente enriquecedora. Mirela se mostrou acessível, sensível e comprometida com o projeto e com a causa que ele representa. Extermínio – Cachoeira do Sul é mais do que um filme, é um chamado à consciência, à empatia e à ação sobre o extermínio de pessoas trans.
É urgente assisti-lo. É urgente ouvi-lo. É urgente não esquecer Nickolle e todas as outras que antes dela vieram. Isso é cinema urgente.
Autor
-
Natural de Porto Alegre (RS), formada em Produção Audiovisual pela PUCRS, com curso de extensão em Escrita Criativa. Realizadora audiovisual, com foco em desenvolver projetos que inspiram e causam impacto, esse é o seu foco editorial e artístico.
Ver todos os posts