APENAS COISAS BOAS (2025) – O AMOR É UM ACIDENTE QUE NÃO SUPORTA A TUDO
“O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.” – 1 Coríntios 13:4-7.
A vida na estrada, de calça jeans colada e jaqueta de couro, Marcelo. “Como Jesus numa moto, Che Guevara do acostamento, Bob Dylan numa antiga foto”, canta Sá e Guarabyra, que pensei e lembrei logo no início de “Apenas Coisas Boas” (2025). E a fusão com o cenário do Agreste, a vida no meio do campo, bois, mugidos, pastos, leite, ordenha, Antônio.
Extensão é o que dita o cenário de vastidão que causa tanto afastamento e proximidade. Silêncio. Onde a voz ecoa pelo horizonte, isolada e rodeada por desertos de fartura. Antônio encontra Marcelo sangrando e sofrendo estirado no asfalto, recolhe seu corpo e o coloca no cavalo. O Amor é um acidente.
Um acidente e o amor podem levar ao contato de corpos, sangue e suor, pulsão de vida. Silêncio entrecortado por dor, murmúrios dolorosos, gemidos de sofrimento. Amor e acidente são analógicos, como fogão a lenha, pasteurização. A tempestade vem diferente na cidade e no campo. O resultado de ambos é a confusão.
Antônio rejeita vender sua propriedade para o pai. Agro é guerra. Nesse ponto, “Apenas Coisas Boas” (2025) se mostra um Western. Mais especificamente, um Agrowestern Moderno. Um dos pontos históricos da expansão pro Oeste, tanto nos EUA do século XIX quanto no Brasil no tardar do século XX, foi a aquisição de propriedades e a exploração de recursos naturais. O pai homofóbico. “Você nunca é um homem”. Antônio explica que não precisa matar o pai, terá sua herança em breve, e sua herança morrerá com Antônio. Um não é filho para o pai e o outro não é pai para o filho. Sangue só define propriedade, não amor. O amor não tudo suporta.
Com Marcelo, o amor limpa as feridas e lambe sangue. Tira a roupa e se junta ao banho. Se preda frente à presa que se deixa devorar. O amor é essa coisa que morde, lambe, chupa, enrijece, goza e escorre. Afaga e acaricia.
A jornada solitária de quem atravessa as estradas por aí. Vive com outros planos e não-planos. Até o amor te parar, como um acidente. Amor pode ficar até melhorar e tem medo de incomodar. Como um acidente, sente falta na distância e abraça forte quando se senta na garupa, estende a mão para não se afogar em águas terrosas.
O amor é como um acidente, é vigiado por curiosos e pessoas com más intenções. Amor é o que te prende aqui? “Aqui não tem nada pra você”. Ter. Amor que desliza a mão pela pele, pelo sexo e beija os pés. Acorda preocupado e olha para o horizonte, tem medo de ser abandonado e numa manta é abraçado.
Amor não é propriedade, não é agro, para se plantar mais do mesmo. Amor se defende de quem mata e caça. Amor também apaga a brasa, amor resgata. “Envelheceria com você”. Se enlaça, deita na grama e aperta a bunda.
Amor não é um quadro gigante na parede. Na velhice, o amor se lembra. Apenas coisas boas ficam? Não toca a esfera do desejo e da fantasia do outro. Também some, desaparece a aliança. “Único desafeto de Marcelo sou eu”, sabe o agora velho e rico Antônio para a policial. A segunda parte do filme é a dialética do amor-ódio, a capacidade de um se transformar em seu oposto pelas suas próprias características dentro de um determinado contexto.
Helga encontra copo com fluidos estranhos e tampa de garrafa de cristal com sangue, arranhões na porta. Amor também bate, humilha, agride. Liga e tem a chamada recusada. Há homoafetividade por todos os cantos, menos em seus olhos. Ser feliz sem amar ninguém, não amar também é ser livre a depender. Largar o passado. Começar o lance com Edu, menos beber o conhaque do desaparecido Marcelo. Antônio admite sentir alívio com o sumiço do marido. Feliz.
Amor também é não tentar recriar tudo de novo com outro alguém. Marcelo só foi até a antiga casa deles. Descreve o mato tomando conta dos cômodos, da poeira, rachaduras e o teto parcialmente desabado sob o antigo fogão a lenha. “Todas as ruínas são os restos de um sonho realizado”, para citar Leminski. Sonhos acabam quando se acorda? A natureza pouco a pouco toma conta de tudo. Mensageira natural de coisas naturais. Segundo Benjamin, a ruína surge como resultado de um processo de acumulação, que ressurge do passado como legado transformado mesclado ao presente. O legado é o desaparecimento se não transformado em alegoria para mediar sua ideia pela história.
“A única coisa que restou de nós é essa casa”, suplica Marcelo, voz sem rosto na caixa de mensagens. Condenada. Algo que não existirá mais. O valor “ahistórico” do que não é herança e não se perpetuará pelo ritmo do tempo. “Nunca deveríamos ter saído daquele rio, lá nós seríamos eternos”, Marcelo é singelamente inocente. “Ninguém entra no mesmo rio duas vezes”, diz a famosa frase de Heráclito. Mas existe um acréscimo, mesmo no rio esse não continua o mesmo, e até os cadáveres afogados seguirão seu fluxo e sofrerão a ação do tempo.
Amor não é eterno, é terno.
Autor
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Doutorando em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Paraná (PPGCOM-UFPR), vinculado à linha de pesquisa Comunicação e Cultura; Mestre em Comunicação (PPGCOM-UFPR); Bacharel em Publicidade Propaganda (UFPR). Integrante do NEFICS - Núcleo de Estudos de Ficção Seriada e Audiovisualidades (UFPR/PPGCOM-UFPR/CNPq). Sócio da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (SOCINE). Bolsista CAPES-DS. Escritor, Roteirista e Redator. Autor da coletânea de contos "O Insosso e o Insólito entre os Pinheirais". Escritor da Revista Película (ISSN: 3085-6183). Pesquisador nas áreas de: Comunicação; Cinema; Cultura; Narrativas Audiovisuais; Narrativas Midiáticas e Comunicação Política.
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