O OUTRO EM NÓS É O ESTRANHO
A câmera acompanha pés que parecem desejar caminhos próprios, surge em cena a imagem de um rosto estranho virado para uma cidade reluzente. O roteiro do filme Monster (2023) conduz o espectador a planos diferentes, em que cada personagem traz uma nova perspectiva. No decorrer da trama, os ângulos captados pela câmera, certamente de forma intencional, são centrados em recortes, como numa espécie de mosaico em que a narrativa será descortinada aos poucos. Há um entendimento do perigo de uma única versão, onde fatos podem ser julgados apenas por uma ótica linear, sem levar em conta as partes que constituem o todo. Através desse formato, o diretor Hirokazu Kore-Eda imprimiu curiosidade no espectador, preservando o segredo da trama. A construção dos personagens nos leva à seguinte reflexão: a existência da alteridade (em nós) prova que não existe uma única maneira de estar no mundo.
O espectador será confrontado com o cotidiano de uma mãe com um filho. Ao longo dos dias, a mãe começa a perceber comportamentos estranhos relacionados ao filho. Surge nela a desconfiança de que Minato está sofrendo bullying na escola. Ela tenta estabelecer um diálogo com ele, mas entre os dois há o interdito. Como desatar esse nó chamado infância? Estamos em terreno pedregoso onde cada passo é um aprendizado diferente. O silêncio entre eles funciona como um fio condutor. Preocupada com a situação, ela vai à escola para entender o que está acontecendo com o filho. A diretora da escola apenas faz anotações com ar indiferente, seguido de um discurso burocrático. A infância é este lugar minado onde alguns adultos não conseguem estabelecer uma conexão franca com as crianças.
Dia após dia, a situação se intensifica. Há murmúrios de que o professor Hori está agredindo Minato. Não há diálogos sinceros, mas sim um pedido de desculpas silenciador; tudo atravessado pela frieza burocrática de um sistema educacional engessado. Procura-se um bode expiatório, nesse caso, o professor. De tantas reuniões infrutíferas, surge a pergunta da mãe para a diretora: “não vejo nenhuma vida em seus olhos, estamos falando de seres humanos aqui”? Seria desinteresse da escola em enxergar a complexidade do problema? Em parte, sim, entretanto, a ausência de vivacidade da diretora pode ter outro nome: luto. Instala-se nova perspectiva diante de outro personagem.
A narrativa muda o foco para o professor Hori. Um sujeito idealista que diante de todas as animosidades da vida escolar, tenta ser um educador digno, porém é enredado pelas mentiras dos alunos e pela incompetência de seus pares de lidar com uma situação de bullying na escola. Neste ambiente escolar hostil, surge uma relação de amizade improvável entre duas crianças.
Hoshikawa vive entre dois infernos: o bullying dos colegas de sala e a violência de um pai assustador. Sobre a sombra de um rosto delicado, ele não revida. Constrói rotas de fuga, mundos paralelos e fantasias para suportar a dor de ser rejeitado. Minato não consegue defendê-lo, precisa exercer sua negação hostil para provar aos outros colegas que se comporta como um menino “de verdade”. O que se espera do comportamento de um menino? A masculinidade agressiva e a insensibilidade. O prêmio para os violentos e a punição para os gentis. Hoshikawa carrega a mancha do fracasso consigo, ele é chamado de alienígena pelos colegas e cabeça de porco pelo pai, ser diferente dos outros o torna banido desses lugares. Dentro de si há uma pulsação de vida que nem ele tem dimensão. A infância revisita muitos questionamentos diante do desconhecido. Hoshikawa é o personagem que emana coragem, não tem medo de ser ele mesmo.
Ressalto o recorte do filme em que Minato doa um dos sapatos para Hoshikawa configurando um laço de empatia entre os dois. Ele compartilha para vivenciar o lugar do amigo.
Em outra cena, Hoshikawa segue um caminho junto a Minato em que ele nomeia cada flor do local. Neste momento, Minato acha esquisto que um menino se sinta interessado por flores. Hoshikawa adverte: “Garotos que sabem nomes de flores são assustadores’? Há uma busca de Minato pelo entendimento da alteridade. Sim, Hoshikawa pode gostar de flores e isso não faz dele uma pessoa anormal, apenas alguém que aprecia flores.
Sigmund Freud nos diz que o inquietante é aquela espécie de coisa assustadora, que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar. Minato encontra o familiar no estranho, subentende-se que ele também necessita navegar sobre suas estranhezas. Hoshikawa desperta em Minato esse desejo de estar no lugar do outro. O desconhecido é um terreno fértil que revela o sentimento de afeto entre ambos. Sentir-se estranho nos torna humanos. Todos nós habitamos a zona do “estranho familiar”.
Bell Hooks sinaliza: se não experimentamos o amor em nossas famílias estendidas de origem (o primeiro âmbito de comunidade que nos é oferecido), o outro âmbito onde as crianças, em particular, têm oportunidade de construir uma comunidade e conhecer o amor é no da amizade. Hoshikawa e Minato constroem um mundo à parte, dentro desse universo as angústias infantis são diluídas. A amizade entre ambos é “matéria de salvação”. O amor também é construído através das diferenças, manifesta esse espaço em que brota o entendimento de si e do outro.
A frase que traduz a necessidade de respeitar a diversidade humana é dita pela diretora do colégio durante um diálogo com Minato. “Se só algumas pessoas puderem tê-la, isso não é felicidade. É simplesmente um absurdo. A felicidade é algo que qualquer um pode ter”.
Os dois atravessam um túnel, tencionando chegar a uma ferrovia de trem abandonada, esse atravessamento concreto e, ao mesmo tempo, simbólico representa a possibilidade de adentrar um lugar onde ambos podem exercer a própria alteridade, junto a seus afetos, sem a presença da opressão social. A natureza, um lugar simbolicamente selvagem, reflete a liberdade que ambos almejam. A construção desse novo universo dá forma aos afetos de ambos, resguardando tanto a empatia quanto a alteridade. É na travessia que haverá possibilidade de renascimento.
Bibliografia:
Freud, Sigmund,1856-1959. História de uma neurose infantil: (o homem dos lobos); além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920) / Sigmund Freud. Tradução e notas Paulo César de Souza -1°. ed.- São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Hooks, Bell. Tudo sobre o amor: (novas perspectivas). Tradução Stephanie Borges- ed.- Elefante, 2000.
O convívio entre os diferentes (o entendimento do outro) tem sido “o” assunto nesses dias de caos em que vivemos; caos acentuado por uma força própria desse tempo que empurra a todos para a periferia das opiniões, tornando-as radicais, polares. Belo assunto, Manhana. Aí há muitas logias a que debulhar. Parabéns pelo texto crítico.
Excelente e primoroso texto.
Excelente análise, fiquei agora com muita vontade de assistir o filme!!!