CLACSO CINE 2025: CINEMA LATINO-AMERICANO EM DIÁLOGO COM MEMÓRIA, RESISTÊNCIA E IDENTIDADE
Entre os dias nove e doze de junho de 2025 aconteceu a X Conferência Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales, “Horizontes e transformações para a igualdade Democracias, resistência, comunidades, direitos e paz” em Bogotá, na Colômbia. Esta conferência é sem dúvida uma das mais importantes da América Latina para as ciências sociais. Os painéis, mesas redondas, grupos de trabalho e consequentemente a mostra de cinema do evento carregam o sentido de construção de um conhecimento crítico e sobretudo muito politizado. Os temas dessas atividades, também muitos e diversos, fazem ecoar um sentido anticolonialista e regional fundamental para nos pensarmos como latino-americanos, e o que isso significa em termos identitários, geográficos e culturais
Foi especificamente no edifício da Ágora Bogotá, um marco arquitetônico brutalista na região central da cidade, que foram exibidos uma série de filmes selecionados para o Clacso Cine, Festival de Artes y Cultura Audiovisual. Uma das marcas da curadoria realizada pelo pessoal da Clacso é o encontro dos filmes com temas caros ao congresso, e obviamente também às ciências sociais contemporâneas. Filmes, em sua maioria documentários, que retratam lutas de povos indígenas, originários e tradicionais e resistências urbanas. Outros abordando também a luta de mulheres em diferentes esferas sociais e econômicas, interseccionalidades, questões de memória, trabalho e meio ambiente . Obras que marcam uma posição forte na defesa da democracia e contra injustiças sociais e ditaduras declaradas ou disfarçadas por parte dos realizadores e realizadoras. Esta resenha pretende discutir brevemente algumas dessas obras e a mostra de forma geral, e foi baseada em anotações tomadas durante as exibições e em estudos subsequentes.
“Indomesticali” (2017) de Carlos Rodrigues Aristizábal, é um documentário baseado em conversas e resenhas em grupo. As falas são recortadas pela montagem mas também pelas classes e raças, revelando de forma sensível diferentes perspectivas sobre o trabalho doméstico. O filme alterna um trabalho de filmagem com dois grupos sociais distintos: mulheres negras que trabalham, ou trabalharam em algum momento prestando serviços domésticos, e mulheres, brancas de classe média aparentemente alta, que discutem as experiências e regras impostas às trabalhadoras domésticas com as quais mantiveram uma relação trabalhista. As contradições explodem.
O documentário revela questões estruturais do trabalho doméstico contemporâneo, com atenção crítica às dificuldades no acesso aos direitos das trabalhadoras, muitas vezes desconhecidos pelas mesmas. Em determinado momento duas jovens descrevem abusos trabalhistas e sexuais: são relatos de culpabilização que recai sobre à mulher negra em situações de exploração nas casas grandes da América Latina dos dias de hoje. O filme denúncia ainda a existência de práticas como a cooptação de meninas em zonas rurais para inseri-las em práticas de neo-escravidão. A trama do trabalho dessas mulheres vai costurando um uniforme, construído no filme como signo da subserviência, e que vai se revelar como narrativa imagética que une os diversos relatos documentais.
O neologismo do título – “Indomesticali” – remete a in-domesticação, que consiste numa ideia de não ser ou, melhor, ter que se fazer doméstica, tanto no sentido do trabalho de cuidado e limpeza em residências particulares, mas também no sentido da docilização do ser, como se fez com os animais e plantas, até que se tornassem domésticos. Cali, no final da palavra, localiza geograficamente no sentido de situar o filme na terceira maior cidade da Colômbia. As falas das patroas, os pequenos preconceitos, a situação de vulnerabilidade estrutural das mulheres jovens revelam um sistema muito bem definido por um conjunto de normas, valores e práticas sociais que emergem do processo de colonização e que moldam as relações de gênero, reforçando a dominação masculina e a subordinação das mulheres, especialmente aquelas racializadas e de classe trabalhadora.
Trata-se de um manifesto para indomesticar frente à colonialidade de gênero, conceito é de María Lugones que explica como o sistema colonial europeu não apenas impôs formas de poder e organização social, mas também moldou e impôs um sistema de gênero específico aos povos colonizados, subalternizando as mulheres e outras identidades de gênero na América Latina.
Partindo de outra proposta narrativa, mas atendo se ao formato documentário o filme “Mataveni Ukuo Deiyu” (2025) “O valor do bosque” foi realizado por , junto aos Indígenas Piaroa – autodenominados “Huottüja” ou “Wothuja – , que vivem ao longo da região do médio Orinoco, na Colômbia, próximo à fronteira com a Venezuela. Este documentário foi realizado por meio de um mecanismo financeiro e de mercado REED, desenvolvido no âmbito da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC), em parceria com o Grupo de Investigacíon Justícia Climatica y Carbono em parceria com diferentes Universidades, colombianas e internacionais. O que demonstra como o audiovisual é pensado também de maneira institucional em nosso tempo, o que não significa nenhum tipo de perda crítica. Afinal esta obra se constrói como um registro de memória na medida que registra as falas dos anciões e anciãs que vão narrando em língua nativa os blocos temáticos do filme enquanto jovens Piaroa realizam as atividades cotidianas, demonstrando sinergia e continuidade entre as tradições orais e a cultura viva do grupo. As concepções da cosmogonia Piaroa também aparecem tanto na narrativa imagética-visual quanto textual.
Estes dois filmes podem ser lidos como investigações sobre manifestações contemporâneas do colonialismo, e evidenciam como este sistema histórico não apenas subjugou econômica e politicamente as populações na América Latina, mas também impôs um sistema de exploração baseado em marcas de raça, classe e gênero que hierarquizou e subordinou certos grupos em relação a outros na história da região.
Já a temática do reconhecimento dos territórios urbanos periféricos que lutam cotidianamente pelos direito a uma vida digna e segura, e que resistem às injustiças especulativas nas cidades colombianas podem ser vistas em “La Pintada” (2022) de Luisa María Quiceno Cabrera e em “Crónicas del Territorio: Memorias del barrio Mirador” (2025) de Edward Andrey Forero Aguirre em parceria com com lideranças daquele bairro.
“Bairro obrero y militante” é a cartela que apresenta o Mirador II neste documentário institucional que gira em torno da organização e trabalho comunitário e da ocupação histórica e social do bairro. O filme mostra como os moradores e moradoras construíram os encanamentos de esgoto do bairro por meio de um mutirão aos domingos. A comunidade se torna organizadora e mantenedora da ordem e dos bens públicos, evidenciando como tanto como o Estado tem sido ausente para com sua atuação junto aos mais necessitados socioeconomicamente, mas ao mesmo tempo mostram como o povo unido possui poder real de intervenção nessas mesmas realidades socioeconômicas.
O pesquisador Michael Pollak observa que a memória – constitutivamente complexa, fragmentada e baseada em lembranças individuais e coletivas – se materializa em representações externas e concretas: no espaço, no corpo e nos gestos, nos objetos técnicos, e consequentemente, na imagem. O cinema pode ser concretamente pensado como representação da memória social, que se constitui na relação de construção e trocas, mas também disputas simbólicas e sensíveis entre as pessoas em sociedade.
Esta percepção nos leva diretamente aos relatos pessoais e registros de fotos e vídeos produzidos durante a infância da diretora Lissette Orozco, do longa metragem documental “O pacto de Adriana” (2022) é um álbum de família nunca mostrado que revela os limites tênues entre investigação e sentimento no trabalho documental. O filme tem como ponto de partida uma ligação em que Adriana (a tia Chany) residente em outro país, informa que não pode retornar ao Chile para visitar sua mãe, no caso a avó de Liss, já bastante idosa. Os vínculos afetivos não se rompem, mas se transformam ao longo do tempo e das circunstâncias deste exílio, que vão sendo reveladas neste filme-relato intimista sobre os pactos de silêncio. Resquícios dolorosos de memória das ditaduras na América Latina do final do século XX.
Tudo muda quando tia Chany é presa no aeroporto acusada de trabalhar para o Dirección de Inteligencia Nacional (DINA), e ser cúmplice de assassinatos e torturas na ditadura chilena de 1971 a 1990. O DINA foi comandado por Manuel Contreras, braço direito de Pinochet. As fotos em momentos de descontração dos torturadores com Chany e outras mulheres levantam dúvidas duras. O filme gira em torno de ligações que não se completam ou se encerram bruscamente. Ela apela à questão afetiva do amor à família e o filme tem que ajudar a inocentá-la de alguma maneira. Chany em 2011 aguarda seu julgamento em prisão domiciliar e seu processo judicial não avança. O documentário por sua vez avança: durante um acidente da diretora a tia sai do país. Uma entrevista a TV australiana revela falas contraditórias de Chany. Liss, a diretora, se pergunta: por que ela foge?
“¿Hasta Cuándo?” (2022), dirigido por David Escobar, é outro curta-metragem que aborda a memória social, enfrentando diretamente a questão das desaparições forçadas no interior da Colômbia. A obra acompanha um grupo de cantoras de Tumaco em sua busca por familiares desaparecidos, ao mesmo tempo em que evidencia a violência sofrida por comunidades indígenas diante da ação de paramilitares, narcotraficantes e da ausência de apoio estatal. O filme combina registros de buscas em cemitérios, exumações e investigações forenses em valas comuns. A utilização de imagens raw, de baixa qualidade e captadas por celulares, reforça a dimensão cotidiana, violenta e precária dessas experiências. O filme foi exibido em festivais internacionais, e recebeu o prêmio de melhor documentário de Direitos Humanos no festival “Contra el silencio todas las voces” no México em 2022.
Reajustando as lentes para um foco nas memórias de forma mais individualizada “Rasureitor: Peluquería Disidente” (2022), dirigido por Paola Zuluaga Palacios, acompanha a trajetória de Rasureitor, barbeira do bairro Olaya, que percorre com seu estúdio itinerante, diferentes territórios urbanos, coletando relatos de pessoas que debatem gênero e as experiências dentro e fora do Cárcel Buen Pastor, uma espécie de presídio local.. O rap atravessa a narrativa reforçando o vínculo entre estética e política, construído com maestria também na fotografia que varia entre closes faciais e imagens de drones. O filme enfatiza o cabelo-corpo como campo de batalha da liberdade de expressão, com relatos que consolidam a narrativa da barbearia como um lugar de resistência, cuidado e transformação coletiva. Impossível não relacionar os filmes com essa experiência aparentemente banal, mas sensivelmente psicanalítica de se abrir nesse momento de cuidado e memórias que atravessam nossas vidas quando simplesmente cortamos os cabelos.
Essas breves análises revelam como os filmes, especialmente em situações de curadoria como a que está projetada para o Clacso Cine, Festival de Artes y Cultura Audiovisual da Conferência da Clacso, possuem um valor intrínseco para a discussão de determinados temas. Infelizmente este potencial não foi aproveitado neste evento. Os filmes poderiam ter sido organizados tematicamente, mas foram exibidos numa sequência aleatória e direta. Sem as necessárias pausas para debate entre sessões. Os filmes podem ser e de fato são muitas coisas. Quando exibidos em um evento acadêmico, entende-se que eles estão sendo pensados em função de seu valor enquanto conhecimento. Seja como registro, mas também como produtores de conhecimento imanente, ou seja, agenciando e estimulando o conhecimento no momento em que são exibidos. Outras estratégias, como o convite à participação dos realizadores também poderiam ser levadas em conta em eventos futuros. Elas certamente contribuíram para essa experiência de tomar os filmes como forma de conhecimento. O contexto todo revela que há ainda uma relação difícil entre imagens e conhecimento para os cientistas sociais, pensando na expressão de Sylvia Caiuby Novaes. Afinal, é preciso estar atento às imagens para se pensar a América Latina e o mundo todo em nossos tempos.
REFERÊNCIAS
LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas [online]. 2014, v. 22, n. 3 [Acessado 3 Junho 2022] , pp. 935-952
NOVAES, Sylvia Caiuby. Imagem e ciências sociais: trajetória de uma relação difícil. In: BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da; HIKIJI, Rose Satiko Gitirana (orgs.). Imagem-conhecimento: antropologia, cinema e outros diálogos. Campinas: Papirus, 2009. p. 35–59.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2278/1417. Acesso em: 10 set. 2025.
Autor
-
Cientista social, professor de sociologia e pesquisador de cinema em nível de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFSCar
Ver todos os posts