O Insuficiente avesso da libido em “Novitiate” (2017)
Na correnteza da crítica cultural, The Substance (Coralie Fargeat, 2024) e as performances de Margaret Qualley e Demi Moore geraram intermináveis comentários, nas mesmas proporções exaustivas do culto ao corpo jovem que o longa-metragem propunha de maneira ácida e extremada, visando à perturbação do/a espectador/a. São nesses momentos calorosos, de ápice da comoção pública, que muitos de nós se sentem convocados a fazer um pronunciamento.
Rebobinando as fitas na carreira de Qualley, encontramos uma atuação tão desafiadora quanto a concupiscente personagem Sue. Em Novitiate (Margaret Betts, 2017), a atriz incorpora o avesso da libido[1], a paulatina negação do corpo. Cathleen, que presenciara o conturbado desfecho do matrimônio de seus pais, passa a idealizar o amor quando escuta de uma freira, na Escola Paroquial, que “não pode haver amor sem sacrifício” — o diferencial da religião cristã. Criada por uma mãe independente, cética e divorciada, a protagonista descola do núcleo familiar ao decidir ir para um dos conventos mais ortodoxos de preparação para o noviciado: a Amada Rosa. A despeito da jornada de Cathleen, o drama, em escala mais ampla, contextualiza-se na década de 60, período em que ocorre o Concílio Vaticano II – encontros que sintetizam em 16 documentos uma série de reformas na igreja católica que há quase 100 anos não se reunia para rever suas práticas institucionais. Esses documentos afetaram diretamente os conventos, suas atividades e a importância das freiras no clero.
A regência da Madre Superior — interpretada por Melissa Leo — orquestra um ethos casto, sadomasoquista e persecutório entre as irmãs. As tonalidades frias que percorrem as cenas dentro da instituição reforçam a ausência de calor nas relações. E o amor de Deus, “incondicional”, precisa ser conquistado pelas postulantes às custas do direito de olharem nos olhos umas das outras e nos reflexos de seus espelhos, para que não se distraiam da sua real missão. A alternância entre horários de “silêncio comum” e horários de “silêncio maior” traduz o requinte político na supressão das vozes daquelas que desejam ser correspondidas em seu amor.
O brutal estilhaçamento de suas vaidades, justificado pela ideia de que Deus não é “uma fantasia”, mas sim “trabalho duro”, condiciona uma excessiva e constante “busca pela perfeição”. Enquanto as postulantes são diminuídas, o poder da Madre cresce. É pela sistemática repetição dessa dinâmica relacional que a irmã Margaret — interpretada por Ashley Bell —, freira que as acompanha, vai se cansando e demonstrando sinais de arrependimento. Em suas preces silenciosas, enuncia: “eu era muito nova e não sabia o que estava fazendo”. Masturba-se como quem quer curar o desespero e começa a questionar os limites de sua fé. Mas é na véspera de sua renúncia que a personagem insurge e enfrenta a Madre, que evita a qualquer custo compartilhar o conteúdo dos documentos com as demais irmãs.
Concomitante a tal clamor, Cathleen mergulha no resiliente isolamento do próprio corpo. A protagonista, que já não se identificava com os relatos das demais postulantes sobre experiências de beijo prévias ou fantasias romântico-sexuais, passa a tratar a mãe com frieza nos momentos em que recebe sua visita e a manifestar baixo apetite durante as refeições. Além de perder peso, Cathleen solicita à Madre Superior sua “disciplina” — um instrumento de autoflagelo e mortificação da carne.
É negando as mais simples experiências de prazer e a habilidade de interlocução com quem está à sua volta que Cathleen cava fundo um sufocante vazio. A abstenção dos sentidos culmina em desmaio, sintoma do gradativo desligamento fisiológico que a personagem voluntariamente propôs a si. O despertar na enfermaria, porém, resgata a possibilidade de conexão com a própria libido, seja por meio da alimentação, seja por meio de carícias partilhadas com Emanuel — interpretada por Rebecca Dayan —, irmã recém transferida de outra instituição com quem vem trocando furtivos olhares.

Novitiate (2017)
Qualley impressiona com a catatônica, faminta e incessante repetição da frase “please, comfort me”, dita na surdina enquanto Cathleen e Emanuel ocupam a mesma cama à noite. O clímax da narrativa retoma o paradigma da separação entre mente e corpo apontando para não apenas sua insuficiência, como também sua periculosidade. Distanciar-se ao extremo dos sentidos carnais não eleva o ser. Ao contrário, o perturba.
A confissão de Cathleen, cuja conclusão alega que o que fez “não foi pecado”, bem como a visita do arcebispo, que adverte a Madre Superior a ler os documentos para as irmãs e parar com suas “práticas medievais”, fazem com que o seu castelo de cartas desmorone. É nesse ponto de crise que o filme empurra a personagem para enxergar, forçosamente, o próprio reflexo: aos olhos estruturais do clero, apenas mais uma freira, mais uma figura feminina temente a Deus, cuja voz e poder de decisão são tão desimportantes quanto ela crê serem os de suas postulantes. Jogada ao chão do altar da igreja, ela se martiriza e resmunga a Deus: “cadê você?”, como quem teima e nega a materialidade dos fatos.
Essa crise desencadeada pela reforma, representada na ficção, impulsionou uma crescente evasão dos/as devotos/as da igreja católica. A imposição de limites ao sacrifício provocou, em muitos, desilusão e ceticismo. Outro ponto de tensão que se soma na História é a crescente popularização de demais vertentes religiosas, acompanhada de crises políticas e movimentos da contracultura.
Novitiate (2017), então, coloca luz à dúvida como possibilidade existencial e como mobilizadora de transformações, seja na micropolítica do cotidiano, seja na superestrutura que condiciona a sociedade. Além disso, demarca, em termos comparativos, a versátil atuação de Margaret Qualley. Nesse sentido, a direção de Maggie Betts, com muita delicadeza, consegue retratar nuances da sexualidade feminina, como os sentimentos de culpa e dever moral que acompanham a disciplina e o celibato em contraposição ao apetite, ao desejo e ao clamor por liberdade.
Indicado a vários prêmios e vencedor do Black Reel Awards na categoria “Melhor Roteiro de Estreia”, do Capri Hollywood International Film Festival na categoria “Atriz Coadjuvante” (Melissa Leo), do Hamptons International Film Festival na categoria “Tangerine Entertainment Juice Award”, do Sundance Film Festival na categoria “Prêmio Especial do Júri – Dramático” e do Women’s Image Network Awards na categoria “Melhor Longa-Metragem”, o filme concentra 123 minutos que merecem ser assistidos.
[1] “Energia postulada por Freud como substrato das transformações da pulsão sexual quanto ao objeto (deslocamento dos investimentos), quanto à meta (sublimação, por exemplo) e quanto à fonte de excitação sexual (diversidade das zonas erógenas)” (Laplanche, 2001, p. 265). Para saber mais sobre o conceito de libido, ler: LAPLANCHE, Jean. Vocabulário da psicanálise / Laplanche e Pontalis. Direção de Daniel Lagache; tradução Pedro Tamen. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 265-267.